Todo mundo ficou sabendo que os jogadores da seleção
alemã visitaram a aldeia dos índios pataxós, perto de Monte Pascoal na Bahia,
onde o Brasil foi “descoberto” para pilhagens internacionais desde então. A
repercussão deste encontro foi tão grande que os campeões da Copa do Brasil da
Fifa comemoraram com a dança dos índios pataxõs em frente ao Portão de Brandemburgo
em Berlim, além de fazerem uma gozação com a dança dos “gauchos” argentinos. O que pouca gente ficou sabendo, porém, foi
da eficácia simbólica do feiticeiro da tribo, o amuleto secreto dos alemães que
foi tratado como segredo de estado. É sabido que o Xamã pataxó tem na sua magia
carismática o poder de organizar o universo com a realidade, conforme os
rituais e mitos da comunidade. Consta
que a simpatia dos alemães, junto com os seus propósitos de financiarem ONGs de
defesas socioambientais e indigenistas,
cativaram os pataxós de tal forma que o Xamã, sem entender nada do que é o tal
futebol, se comprometeu a sair, pela
primeira vez na vida, de sua aldeia para assistir e torcer por eles contra
aqueles que se dizem ser os brasileiros, e que querem tomar as terras indígenas
para o agronegócio.
O indígena, feito um alienígena antropológico, entrou
num avião e voou por sobre as nuvens, viu suas matas e rios se afastarem, e foi
mergulhando numa floresta de concreto até aterrizar numa aldeia remota, com
ocas empilhadas umas sobre as outras, cuja tribo estava toda reunida em uma
estranha atividade festiva numa gigantesca arena. Antes de chegar lá, no
caminho do aeroporto até o estádio, pareceu ao Xamã estar entrando numa cidade
abandonada, com grandes avenidas silenciosas e sem ninguém; mas também sem
mortos nem feridos. Entretanto, nas proximidades do local do evento para o qual
se dirigia, pareceu ao Xamã estar entrando num campo de batalha, onde duas
tribos se enfrentavam em luta campal e em perseguições a pé e a cavalo, com
armas de fogo e espadas. Uma das tribos, a que usava capacetes com viseiras e
escudos, atacava com tacapes e jogava bombas de gás nos membros da outra tribo,
os quais vestiam roupas pretas e usavam máscaras no rosto para se protegerem
dos ataques, e mantinham sempre hasteadas faixas com os estranhos dizeres: Queremos
obras de mobilidade urbana de massa, hospitais e escolas também padrão Fifa!
#NÃOVAITERCOPA!
Naturalmente que, como convidado especial, da
categoria VIP-Exótico, o feiticeiro pataxó estava sendo obsequiado com um
serviço de pacote completo de vassalagem para recepção e traslado, cujo
receptivo era dotado de tradutores poliglotas e de crachás Padrão Fifa, que
abriam qualquer barreira de policiais ou bloqueio de manifestantes. De forma que,
momentos antes do início do espetáculo que o país inteiro estava ansiosamente
irmanado para assistir pela TV ou ao vivo, o Xamã estava sendo introduzido na
arena do Mineirão com toda a sua expectativa e curiosidade de índio do século
XXI, louco para entender que ritual é este do futebol que cultiva crentes fundamentalistas
em todas as nações do mundo.
Quando o pataxó entrou nas arquibancadas do
estádio e viu aquela multidão de cabeças, milhares de pessoas sentadas em
círculos em torno do gramado, como se estivessem numa imensa taba, quase entrou
em transe com os seus espíritos curandeiros da floresta. De imediato viu sua imagem
ser projetada nos diversos telões nas arquibancadas, com o locutor elogiando a
autenticidade e a estampa exótica da
figura de um verdadeiro índio brasileiro que se juntava a todo o povo para
torcer pela sua pátria, pela seleção do seu coração... Xamã não sabe, mas
sentiu-se um personagem de literatura antiga, pois na literatura romântica
brasileira transitaram personagens desde o mau selvagem e o bom civilizado, até
o bom selvagem e o mau civilizado. Fomos de Ceci e Peri, em que índio com mulher
branca não rolou direito, não deu cria; mas de Martim e Iracema nasceu Moacir, o primeiro
brasileiro filho de branco com índia, no Ceará da ficção literária de José de
Alencar. De lá pra cá, houve um apagamento dos índios da história deste país,
acabou o romantismo e começaram as disputas por suas terras para o progresso da
nação.
Depois do hino brasileiro cantado à capela pela
torcida e jogadores a todo pulmão, o juiz deu início ao jogo e a bola começou a
correr.. O Xamã pataxó compreendeu desde
o início que a cor dos fardamentos definia as diferentes tribos em confronto, e
que manter o domínio da bola com os pés e conduzi-la até às redes do adversário era o objetivo da competição.
Embora parecesse meio esquisito assistir onze guerreiros de cada lado correndo
atrás de uma bola, com contatos violentos entre eles, o pataxó conseguiu
identificar semelhanças com as atividades esportivas indígenas, como o
zikunariti que a bola é jogada com a
cabeça, ao invés dos pés.
Até os nove minutos iniciais da partida o pajé pataxó
ficou admirado com a dança habilidosa dos atletas em manobras com a bola em
passes de um para o outro, procurando não perder o seu domínio e buscando
colocá-la no fundo da rede da goleira adversária. Então, o Xamã resolveu testar
seus poderes xamânicos, temeroso neste ambiente tão diverso do que até então
praticara seus feitiços mágicos que eram famosos inclusive em outras nações
indígenas. Sacou do bornal o chocalho de palha com penas coloridas e grãos feitos
de sementes, ossos e pedras, e o agitou soltando o seu cântico de pedir a
atenção dos grandes espíritos antepassados do seu povo, enquanto saltitava
trocando de pé de apoio.
Outras organizações e federações estaduais de futebol também
tiveram a brilhante idéia de convidarem seus indígenas, não tanto para
assistirem, mais para serem vistos nos televisionamentos das redes mundiais, e
assim completarem o quadro da mestiçagem da “fábula das 3 raças: branco, negro
e índio” que minimiza o dissimulado racismo brasileiro. Mas, como é de hábito
cultural herdado do colonialismo português, foram convidados apenas os caciques
da cada nação indígena. No estádio era muito cacique para pouco índio, pois de
índio não cacique mesmo só tinha o Xamã pataxó no Mineirão, e convém lembrar
que ele estava lá a convite dos alemães.
Foi assim que, no intervalo da partida, a indiada se
reuniu para fumar um cachimbo da paz, com erva da boa trazida legalizada pela delegação do Uruguai, trocar emails, e
saber das novidades das aldeias tupiniquins. Xamã ficou sabendo que os homens
brancos dizem que o Brasil dispõe de muita terra para pouco índio (estimados em
800 mil índios em 35 etnias!). Soube também, por um cacique da nova geração,
formado como antropólogo, graças ao acesso à universidade através das cotas
destinadas às minorias excluídas, que 99% das terras destinadas para os
indígenas estão na Amazônia (do tamanho do RS + SC + Pr + SP + RJ + Es), mas
que 52% dos índios vivem fora de lá, vivem no 1% de terras restantes. Eis o
problema antropológico, os índios tem
vínculos metafísicos milenares com a terra onde viveram seus antepassados, não
servem outras terras quaisquer.
Não é o caso dos pataxós, mas não é fantástico que
ainda existam tribos de índios isolados na grande Selva Amazônica, sem contato com
os brancos e vivendo igual a mais de 500 anos atrás, nus e sem gripes? E não é
medonho que ainda continuamos querendo extingui-los de vez?!... Enquanto seguimos
atropelando os tratores do progresso civilizatório sobre eles, cada vez mais
aumenta o discurso de culpabilização dos indígenas por estarem “aculturados”,
por 40% dos índios estarem urbanizados.
Iniciado o segundo tempo do jogo, o pataxó resolveu
evitar de influir no resultado no jogo. Ficou cerca de meia hora se segurando e
nada acontecia, depois decidiu testar se era ele mesmo que estava com esta
força toda de fazer até a chover se quisesse. Chacoalhou o chocalho e puxou
seus mantras nativos por apenas cinco minutos. Novamente as torcidas se
agitaram e quando ele parou ficou sabendo que havia ocorrido mais dois gols
alemães, e que a partida já estava 7 a zero. Xamã ficou pensando que tinha
abusado de seus poderes, que havia pesado demais a mão no chocalho e favorecido
apenas um lado da disputa. Sem ainda acreditar que um simples índio teria tantos
poderes no mundo dos brancos, resolveu recorrer a uma provação definitiva. No
finalzinho do jogo, sacudiu o chocalho e puxou o seu cântico xamânico aos pulos
e rodopiando, só que desta vez a favor dos brasileiros: foi quando saiu o gol
de honra do Brasil aos 45 minutos. Não restava mais dúvidas, Xamã herdara a poderosa
força do xamanismo do seu Mestre.
Agradecido, o Xamã lembrou dos ensinamentos do seu
grande Mestre Pajé pataxó, antes dele fazer a sua derradeira viagem para se
juntar ao Cacique Raoni, numa reunião das comunidades indígenas. Evento este em
que o Pajé acabou morrendo, num confronto para combater a construção da
hidroelétrica de Belo Monte e salvar as tribos que vivem na Volta Grande do Rio
Xingu, no Pará. O Mestre feiticeiro pataxó era viajado nas diplomacias e
traiçoeiragens dos brancos. Sempre era chamado para participar dos conselhos
das nações indígenas, desde dos caigangues no sul até dos mundurukus no rio
Tapajós no norte.
Inclusive esteve no oeste dando assistência aos
Guarani-Kaiowá, quando da ameaça que houve de
suicídio coletivo dos índios em protesto a ordem judicial de despejo de
suas terras. Nos seus ensinamentos, o Mestre do Xamã pataxó costumava dizer, no
seu jeito peculiar de misturar a língua tradicional indígena com o português, que
a civilização dos brancos ainda acredita que a sociedade deles é superior a dos
índios. Eles que já extinguiram grandes civilizações, como as dos Maias e
Incas, e dezenas de milenares etnias brasileiras, acreditam que todos os povos
indígenas um dia vão “evoluir” para o modelo de vida consumista deles, ao que
costumam chamar de etnocentrismo e de paradigma do evolucionismo clássico.
Porém, dizia o Mestre, as nações de índios brasileiros
que aqui já viviam antes desta terra ser invadida pelos europeus, sempre
souberam que cada sociedade evolui dentro de sua cultura de forma particular,
visando apenas o funcionalismo de atender às necessidades humanas em harmonia
com o ambiente global. O civilizado colonizador destruiu o paraíso que
encontrou por ser “primitivo” e construiu em seu lugar a sociedade do
individualismo. Por fim, o Xamã lembrou
que o Mestre costumava encerrar suas pregações tribais dizendo que a civilização
ocidental, com todo o seu progresso tecnológico produzindo excluídos sociais
com miséria e violência, é hoje uma sociedade mais atrasada e primitiva dos que
as dos indígenas. Os brancos são incapazes de estabelecer o elo harmônico de
pertencimento que os índios têm com a mãe terra, graças ao hábito dos indígenas
de terem mantido, a duras penas, a cultura sustentável de seus antepassados.
Perdido em seus pensamentos, o Xamã pataxó saiu do
estádio ouvindo as vaias ao time nacional e o comentário de que havia
acontecido o Mineiraço, e que aquele vice mundial ganho com a derrota para o
Uruguai, em 1950 no Maracanaço, apesar de lamentado por 64 anos, seguirá como o
melhor resultado da seleção brasileira em Copas disputadas no Brasil. O Xamã
sentiu um gostinho de vitória, como se estivesse vingando a morte do Mestre e
de tantos índios que têm morrido nos conflitos por terras, assassinados nas frentes armadas do agronegócio, frentes
agrícolas e de criação de gado que avançam mata adentro, destruindo a floresta
e a biodiversidade animal, bem como o pouco que restou da cultura original dos
verdadeiros donos desta nação. Destruindo as reservas indígenas, com ou sem demarcações
legais, a ferro e fogo.
A bola corre mais por fora, entre as empreiteiras e os
governos, entre a CBF e a Fifa, entre as federações e as redes de televisões. A
bola corre mais do que os homens das polícias civil, militar e federal juntas
com os da justiça. A bola corre mais do que os homens da política e que os das
religiões. A bola da ganância corre mais do que os homens de todas as nações,
não temos mais como pará-la. Seremos todos (brancos, índios, pretos e amarelos)
engolidos por ela como numa bola de fogo que cresce até destruir com o planeta
e torná-lo um buraco negro no espaço.
Tristes trópicos: #PERDEUFEIOSUACOPA!