sexta-feira, 1 de agosto de 2014

TRISTES TRÓPICOS: A BOLA CORRE MAIS DO QUE OS HOMENS

Todo mundo ficou sabendo que os jogadores da seleção alemã visitaram a aldeia dos índios pataxós, perto de Monte Pascoal na Bahia, onde o Brasil foi “descoberto” para pilhagens internacionais desde então. A repercussão deste encontro foi tão grande que os campeões da Copa do Brasil da Fifa comemoraram com a dança dos índios pataxõs em frente ao Portão de Brandemburgo em Berlim, além de fazerem uma gozação com a dança dos “gauchos” argentinos.  O que pouca gente ficou sabendo, porém, foi da eficácia simbólica do feiticeiro da tribo, o amuleto secreto dos alemães que foi tratado como segredo de estado. É sabido que o Xamã pataxó tem na sua magia carismática o poder de organizar o universo com a realidade, conforme os rituais e mitos da comunidade.  Consta que a simpatia dos alemães, junto com os seus propósitos de financiarem ONGs de defesas socioambientais e  indigenistas, cativaram os pataxós de tal forma que o Xamã, sem entender nada do que é o tal futebol,  se comprometeu a sair, pela primeira vez na vida, de sua aldeia para assistir e torcer por eles contra aqueles que se dizem ser os brasileiros, e que querem tomar as terras indígenas para o agronegócio.
 O ocorrido naquele fatídico dia do “Mineiraço”, tido como o maior vexame nacional desde a invasão das caravelas portuguesas para saquear o nosso ouro, em que o selecionado pentacampeão do mundo sofreu a pior derrota de sua história, por 7 a 1,  para a Alemanha e foi eliminado na semifinal da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, é já parte da história global. Mas como é que este feito inacreditável aconteceu, e como se pode começar a explicar o inexplicável, é o que vamos fazer a partir de agora, através desta reportagem investigativa, seguindo as pegadas do Xamã pataxó naquele dia.
O indígena, feito um alienígena antropológico, entrou num avião e voou por sobre as nuvens, viu suas matas e rios se afastarem, e foi mergulhando numa floresta de concreto até aterrizar numa aldeia remota, com ocas empilhadas umas sobre as outras, cuja tribo estava toda reunida em uma estranha atividade festiva numa gigantesca arena. Antes de chegar lá, no caminho do aeroporto até o estádio, pareceu ao Xamã estar entrando numa cidade abandonada, com grandes avenidas silenciosas e sem ninguém; mas também sem mortos nem feridos. Entretanto, nas proximidades do local do evento para o qual se dirigia, pareceu ao Xamã estar entrando num campo de batalha, onde duas tribos se enfrentavam em luta campal e em perseguições a pé e a cavalo, com armas de fogo e espadas. Uma das tribos, a que usava capacetes com viseiras e escudos, atacava com tacapes e jogava bombas de gás nos membros da outra tribo, os quais vestiam roupas pretas e usavam máscaras no rosto para se protegerem dos ataques, e mantinham sempre hasteadas faixas com os estranhos dizeres: Queremos obras de mobilidade urbana de massa, hospitais e escolas também padrão Fifa! #NÃOVAITERCOPA!
Naturalmente que, como convidado especial, da categoria VIP-Exótico, o feiticeiro pataxó estava sendo obsequiado com um serviço de pacote completo de vassalagem para recepção e traslado, cujo receptivo era dotado de tradutores poliglotas e de crachás Padrão Fifa, que abriam qualquer barreira de policiais ou bloqueio de manifestantes. De forma que, momentos antes do início do espetáculo que o país inteiro estava ansiosamente irmanado para assistir pela TV ou ao vivo, o Xamã estava sendo introduzido na arena do Mineirão com toda a sua expectativa e curiosidade de índio do século XXI, louco para entender que ritual é este do futebol que cultiva crentes fundamentalistas em todas as nações do mundo.
Quando o pataxó entrou nas arquibancadas do estádio e viu aquela multidão de cabeças, milhares de pessoas sentadas em círculos em torno do gramado, como se estivessem numa imensa taba, quase entrou em transe com os seus espíritos curandeiros da floresta. De imediato viu sua imagem ser projetada nos diversos telões nas arquibancadas, com o locutor elogiando a autenticidade e a estampa exótica  da figura de um verdadeiro índio brasileiro que se juntava a todo o povo para torcer pela sua pátria, pela seleção do seu coração... Xamã não sabe, mas sentiu-se um personagem de literatura antiga, pois na literatura romântica brasileira transitaram personagens desde o mau selvagem e o bom civilizado, até o bom selvagem e o mau civilizado. Fomos de Ceci e Peri, em que índio com mulher branca não rolou direito, não deu cria; mas de  Martim e Iracema nasceu Moacir, o primeiro brasileiro filho de branco com índia, no Ceará da ficção literária de José de Alencar. De lá pra cá, houve um apagamento dos índios da história deste país, acabou o romantismo e começaram as disputas por suas terras para o progresso da nação.
 Depois do hino brasileiro cantado à capela pela torcida e jogadores a todo pulmão, o juiz deu início ao jogo e a bola começou a correr..  O Xamã pataxó compreendeu desde o início que a cor dos fardamentos definia as diferentes tribos em confronto, e que manter o domínio da bola com os pés e conduzi-la  até às redes do adversário era o objetivo da competição. Embora parecesse meio esquisito assistir onze guerreiros de cada lado correndo atrás de uma bola, com contatos violentos entre eles, o pataxó conseguiu identificar semelhanças com as atividades esportivas indígenas, como o zikunariti que a bola é jogada  com a cabeça, ao invés dos pés.
Até os nove minutos iniciais da partida o pajé pataxó ficou admirado com a dança habilidosa dos atletas em manobras com a bola em passes de um para o outro, procurando não perder o seu domínio e buscando colocá-la no fundo da rede da goleira adversária. Então, o Xamã resolveu testar seus poderes xamânicos, temeroso neste ambiente tão diverso do que até então praticara seus feitiços mágicos que eram famosos inclusive em outras nações indígenas. Sacou do bornal o chocalho de palha com penas coloridas e grãos feitos de sementes, ossos e pedras, e o agitou soltando o seu cântico de pedir a atenção dos grandes espíritos antepassados do seu povo, enquanto saltitava trocando de pé de apoio.
 Eis que parte do público do estádio, parecendo entrar em sintonia com o seu xamanismo, explodiu em grito de gol. Justo naquele momento acontecia o primeiro gol para a Alemanha. O índio pataxó ficou um pouco assustado com o resultado imediato das suas magias, duvidando até do seu próprio poder em circunstâncias tão adversas das habituais.  Depois ele esperou por cerca de doze minutos, para ver se aconteciam gols sem a sua interferência. Então resolveu testar de maneira mais conclusiva o seu poder de influência com os espíritos e pôs-se  a chocalhar e soltar seus cânticos mais poderosos por cerca de seis minutos ininterruptos. O público, cada vez em maior número, parecia entrar em ressonância e, em transe, não paravam de gritar gols, como numa catarse coletiva que acabou envolvendo as duas torcidas das tribos em confronto. Quando tudo silenciou novamente e o Xamã saiu do seu transe místico, olhou para o placar no estádio e o jogo já estava  5 a Zero para a Alemanha. Ouviu comentarem na sua volta que tinha havido um estranho apagão no selecionado canarinho, e a torcida brasileira passou a vaiar muito a sua equipe até o final do primeiro tempo.

Outras organizações e federações estaduais de futebol também tiveram a brilhante idéia de convidarem seus indígenas, não tanto para assistirem, mais para serem vistos nos televisionamentos das redes mundiais, e assim completarem o quadro da mestiçagem da “fábula das 3 raças: branco, negro e índio” que minimiza o dissimulado racismo brasileiro. Mas, como é de hábito cultural herdado do colonialismo português, foram convidados apenas os caciques da cada nação indígena. No estádio era muito cacique para pouco índio, pois de índio não cacique mesmo só tinha o Xamã pataxó no Mineirão, e convém lembrar que ele estava lá a convite dos alemães.
Foi assim que, no intervalo da partida, a indiada se reuniu para fumar um cachimbo da paz, com erva da boa trazida legalizada  pela delegação do Uruguai, trocar emails, e saber das novidades das aldeias tupiniquins. Xamã ficou sabendo que os homens brancos dizem que o Brasil dispõe de muita terra para pouco índio (estimados em 800 mil índios em 35 etnias!). Soube também, por um cacique da nova geração, formado como antropólogo, graças ao acesso à universidade através das cotas destinadas às minorias excluídas, que 99% das terras destinadas para os indígenas estão na Amazônia (do tamanho do RS + SC + Pr + SP + RJ + Es), mas que 52% dos índios vivem fora de lá, vivem no 1% de terras restantes. Eis o problema antropológico, os  índios tem vínculos metafísicos milenares com a terra onde viveram seus antepassados, não servem outras terras quaisquer.  
Não é o caso dos pataxós, mas não é fantástico que ainda existam tribos de índios isolados na grande Selva Amazônica, sem contato com os brancos e vivendo igual a mais de 500 anos atrás, nus e sem gripes? E não é medonho que ainda continuamos querendo extingui-los de vez?!... Enquanto seguimos atropelando os tratores do progresso civilizatório sobre eles, cada vez mais aumenta o discurso de culpabilização dos indígenas por estarem “aculturados”, por 40% dos índios estarem urbanizados.
 O que grande parte da torcida da arena lotada não sabe é que ser índio é bem mais do que usar um cocar, é uma forma de entender o mundo. Os torcedores não sabem que mesmo urbanizado, com calças de jeans e celulares, ele continua sendo índio, desde que mantenha o elo harmônico com a natureza e com a cultura do coletivismo igualitário, própria do terreiro da sua aldeia indígena, e com os valores de seus ancestrais.

Iniciado o segundo tempo do jogo, o pataxó resolveu evitar de influir no resultado no jogo. Ficou cerca de meia hora se segurando e nada acontecia, depois decidiu testar se era ele mesmo que estava com esta força toda de fazer até a chover se quisesse. Chacoalhou o chocalho e puxou seus mantras nativos por apenas cinco minutos. Novamente as torcidas se agitaram e quando ele parou ficou sabendo que havia ocorrido mais dois gols alemães, e que a partida já estava 7 a zero. Xamã ficou pensando que tinha abusado de seus poderes, que havia pesado demais a mão no chocalho e favorecido apenas um lado da disputa. Sem ainda acreditar que um simples índio teria tantos poderes no mundo dos brancos, resolveu recorrer a uma provação definitiva. No finalzinho do jogo, sacudiu o chocalho e puxou o seu cântico xamânico aos pulos e rodopiando, só que desta vez a favor dos brasileiros: foi quando saiu o gol de honra do Brasil aos 45 minutos. Não restava mais dúvidas, Xamã herdara a poderosa força  do xamanismo do seu Mestre.
Agradecido, o Xamã lembrou dos ensinamentos do seu grande Mestre Pajé pataxó, antes dele fazer a sua derradeira viagem para se juntar ao Cacique Raoni, numa reunião das comunidades indígenas. Evento este em que o Pajé acabou morrendo, num confronto para combater a construção da hidroelétrica de Belo Monte e salvar as tribos que vivem na Volta Grande do Rio Xingu, no Pará. O Mestre feiticeiro pataxó era viajado nas diplomacias e traiçoeiragens dos brancos. Sempre era chamado para participar dos conselhos das nações indígenas, desde dos caigangues no sul até dos mundurukus no rio Tapajós no norte.
Inclusive esteve no oeste dando assistência aos Guarani-Kaiowá, quando da ameaça que houve de  suicídio coletivo dos índios em protesto a ordem judicial de despejo de suas terras. Nos seus ensinamentos, o Mestre do Xamã pataxó costumava dizer, no seu jeito peculiar de misturar a língua tradicional indígena com o português, que a civilização dos brancos ainda acredita que a sociedade deles é superior a dos índios. Eles que já extinguiram grandes civilizações, como as dos Maias e Incas, e dezenas de milenares etnias brasileiras, acreditam que todos os povos indígenas um dia vão “evoluir” para o modelo de vida consumista deles, ao que costumam chamar de etnocentrismo e de paradigma do evolucionismo clássico.
 Porém, dizia o Mestre, as nações de índios brasileiros que aqui já viviam antes desta terra ser invadida pelos europeus, sempre souberam que cada sociedade evolui dentro de sua cultura de forma particular, visando apenas o funcionalismo de atender às necessidades humanas em harmonia com o ambiente global. O civilizado colonizador destruiu o paraíso que encontrou por ser “primitivo” e construiu em seu lugar a sociedade do individualismo. Por fim, o Xamã  lembrou que o Mestre costumava encerrar suas pregações tribais dizendo que a civilização ocidental, com todo o seu progresso tecnológico produzindo excluídos sociais com miséria e violência, é hoje uma sociedade mais atrasada e primitiva dos que as dos indígenas. Os brancos são incapazes de estabelecer o elo harmônico de pertencimento que os índios têm com a mãe terra, graças ao hábito dos indígenas de terem mantido, a duras penas, a cultura sustentável de seus antepassados.
Perdido em seus pensamentos, o Xamã pataxó saiu do estádio ouvindo as vaias ao time nacional e o comentário de que havia acontecido o Mineiraço, e que aquele vice mundial ganho com a derrota para o Uruguai, em 1950 no Maracanaço, apesar de lamentado por 64 anos, seguirá como o melhor resultado da seleção brasileira em Copas disputadas no Brasil. O Xamã sentiu um gostinho de vitória, como se estivesse vingando a morte do Mestre e de tantos índios que têm morrido nos conflitos por terras, assassinados  nas frentes armadas do agronegócio, frentes agrícolas e de criação de gado que avançam mata adentro, destruindo a floresta e a biodiversidade animal, bem como o pouco que restou da cultura original dos verdadeiros donos desta nação. Destruindo as reservas indígenas, com ou sem demarcações legais, a ferro e fogo.
 Aturdido pela repercussão dos acontecimentos em que acreditava ter sido um protagonista, apesar de não ter entrado em campo e não ter feito nenhum gol, o Xamã pataxó decidiu voltar de imediato para a sua aldeia  Quiz esquecer de vez esta fanática religião financeiramente esportiva à serviço da politicagem de acomodação das lutas sociais que é o futebol. Igual ao Xamã, é o que também sugere o antropólogo Roberto DaMatta, dizendo que o futebol no Brasil é um “fenômeno social total” da sociedade brasileira, por articular a estrutura social, cultural,  política, econômica, religiosa e a identidade nacional. Da Matta é autor do livro A Bola Corre Mais Que Os Homens. E foi o que concluiu também o índio Xamã pataxó, quando não aceitou o convite dos alemães para assistir ao jogo da final com a Argentina, e muito menos ao convite posterior de ir até a Alemanha comemorar com eles o tetracampeonato no Velho Mundo: A bola corre mais do que os homens!

A bola corre mais por fora, entre as empreiteiras e os governos, entre a CBF e a Fifa, entre as federações e as redes de televisões. A bola corre mais do que os homens das polícias civil, militar e federal juntas com os da justiça. A bola corre mais do que os homens da política e que os das religiões. A bola da ganância corre mais do que os homens de todas as nações, não temos mais como pará-la. Seremos todos (brancos, índios, pretos e amarelos) engolidos por ela como numa bola de fogo que cresce até destruir com o planeta e torná-lo  um buraco negro no espaço. Tristes trópicos: #PERDEUFEIOSUACOPA!