sábado, 22 de fevereiro de 2014

AS DIFERENTES IRMÃS GÊMEAS

LER dói, lesão por esforço repetitivo é uma doença do trabalho tanto quanto as dores de coluna de quem pegou na picareta abrindo valeta nos velhos tempos do Dmae. Foi preciso que ela adquirisse uma lesão por esforço repetitivo com doloridos sintomas de tendinite crônica, que se agravou criando grande dificuldade de continuar cumprindo sozinha todas as atribuições da lida diária, para finalmente reclamar de sua irmã gêmea, que passou a vida inteira se aproveitando de sua instintiva boa vontade para fazer as coisas.  Ela sabia que a irmã não fazia por maldade ou por preguiça, pois na verdade a irmã foi criada como portadora de deficiência motora, sem habilidade fina de movimentos e débil  de força para os trabalhos pesados. A Esquerilda viveu sempre como mera auxiliar e na sombra da irmã Direima, mas com a aquiescência desta.
        As duas irmãs estavam sempre literalmente juntinhas e, mais do que isso, como se fossem siamesas (não gatas, mas xipófogas), se posicionavam sempre da mesma forma, seja na mesa, na rua ou na cama, compondo um corpo unificado a se deslocar pelo mundo, sempre com a Esquerilda assumindo o lado esquerdo e a Direima a metade direita do corpo duplo. Assim, meio por brincadeira, mas também pelo cumprimento dos desígnios cósmicos do destino contido no próprio nome delas, o pessoal passou a chamá-las de irmãs Direita e Esquerda, para designarem respectivamente Direima e Esquerilda.
        Até então, antes de aparecer as patologias naturais dos corpos que atravessam o limiar que os caracterizam como idosos, a coisa funcionava bem, com a Direima (a irmã Direita) assumindo a sobrecarga de afazeres práticos e iniciativas lógicas da vida, enquanto a irmã Esquerda ficava perdida em seus devaneios e olhares distantes pela janela, sendo preciso  que fosse solicitada a sua ajuda em cada pequena tarefa que precisasse do seu auxílio. Mas agora, com a lesão e a dor crônica provocada  por praticamente carregar a  irmã Esquerda nas costas, Direima decidiu que era hora de haver uma distribuição das tarefas diárias entre as duas irmãs.
         Como a irmã Esquerilda  não havia adquirido destreza para executar sozinha a maioria absoluta das ações mais comuns e rotineiras, a irmão Direita teve que desenvolver um programa de treinamento para gradativamente ir repassando algumas atividades do seu domínio. A primeira missão transmitida foi de que a irmã Esquerda assumiria o comando do mouse sempre que estivessem no computador. No começo era uma desgraça, a seta do mouse na tela parecia uma mosca tonta sem nunca acertar o alvo onde clicar, isso quando a Esquerilda não deletava involuntariamente, por imperícia, arquivos ou trechos de textos. 
Meses depois, a irmã Esquerda descobriu que era capaz de aprender a ter habilidades para fazer as coisas que a irmã Direita fazia com tanta destreza. Com o mouse completamente dominado, tomou atitude e passou a ter iniciativas próprias de ação: abrir e fechar as torneiras, selecionar a chave no chaveiro e abrir e chavear as portas, pentear os cabelos, escovar os dentes, passar manteiga no pão e esfregar sabão durante a lavagem da louça, ao invés de, como era de costume, meramente segurar a louça para que a Irmã Direita fizesse todo o esforço. Empolgada com os progressos da irmã, a irmã Direima passou a delegar tarefas mais complexas, tais como operar o garfo com equilíbrio nas refeições domésticas e manobrar o papel higiênico nos delicados movimentos de secagem e limpeza íntima. Na sequência, entrando  na fase do treinamento das atividades de risco, a irmã Esquerda  foi iniciada no manuseio do  aparelho de depilação com lâminas e no de empunhar a faca de cozinha para picar cebolas e tomates.
         As pesquisas da neurociência comprovam que o lado esquerdo do corpo é comandado pelo hemisfério direito do cérebro, o território onde vicejam a criatividade e a intuição. Dizem que cerca de 80% do nosso dia-a-dia é ocupado por rotinas comandadas pelo lado esquerdo do cérebro, que apesar de terem a vantagem de reduzir o esforço intelectual, escondem um efeito perverso: limitam o cérebro e abrem a porta para o velho Alzheimer se instalar como um vírus no sistema mental. Consciente destes conhecimentos científicos, a irmã Direita, que se sabia comandada pelo lado esquerdo do cérebro, passou a reconhecer os malefícios que o seu instinto lógico e compulsivo de exercer domínio sobre a sua irmã Esquerda acarretou, prejudicando a vida das duas, uma por não ter tido uma cultura de desenvolver suas verdadeiras potencialidades, a outra por ter sido extremamente exigida até a exaustão doentia da dor crônica. 
Envelhecer juntas em harmonia, dividindo as atribuições, passou a ser o propósito das duas irmãs, especialmente depois de compreenderem que os desajustes havidos entre as duas não era culpa delas, era consequência lógica da concepção cultural de nossa civilização ocidental. O nosso alfabeto, por ser silábico, estimula o lobo esquerdo; os ideogramas dos orientais, utilizando símbolos, desenvolvem o lobo direito.  No idioma japonês, por exemplo, que são usados símbolos e sílabas, os dois hemisférios são estimulados no ato da leitura. A meta de ambas não chega a querer que a irmã Esquerilda aprenda a escrever, que seja  tardiamente alfabetizada no manuscrito, até porque ela já é bem alfabetizada nas escritas digitais; mas que pelo menos adquira destreza (além de poder acionar o moderno relógio ponto digital) de assinar o próprio nome com perfeição, para que possa assumir a representação jurídica comercial de ambas, assinando documentos e cheques, caso a tendinite evolua para um impedimento clínico da já esgotada irmã Direima.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

À Beira do Dilúvio

            Neste verão tórrido de temperaturas acima de 40 graus, sentimos do Ipiranga às margens plácidas,  como um povo heróico o calor e o cheiro retumbante saído de nossas próprias entranhas em forma de esgoto a céu aberto. O antigo “Arroio da Ipiranga” é parte vital do corpo de Porto Alegre, como se fosse seu intestino grosso,  feito transparente para que toda a população possa monitorar a saúde da sua cidade. Assim acompanhamos os esforços dos órgãos de saneamento público no interminável combate às escleroses: às formações de ilhas férteis ao longo do canal, onde brotam árvores e ótimas pastagens aproveitadas pelos cavalos dos nossos carroceiros em extinção. 
           O Arroio Dilúvio adquiriu esta denominação, imagino,  em menção à passagem  bíblica, diante do temor generalizado de que ele venha realmente a transbordar de tal maneira que inunde toda a cidade. Do nascente ao poente, este riacho é o trajeto, não só dos dejetos, mas também é o caminho do próprio sol na sua ronda diária pela cidade e, igualmente ao arroio, é no manancial do Guaíba que o sol vai banhar-se e espelhar-se após mais um dia de trabalho, dando um colorido de cartão postal a este renomado pôr-de-sol.
           Talvez a minha geração tenha sido a última a ainda pegar peixes no riacho da Ipiranga, cascudos é claro, mas ainda havia vida nele, quando ainda era um arroio. Com o aumento populacional acumulando-se ao seu redor nos últimos quarenta anos, alem do riacho virar valão, o Rio Guaíba virou Lago sem praias; mas não há só pardais eletrônicos pousados nas esquinas de suas pontes, em seu leito ainda sobrevoam lindas garças brancas. É a resistência da natureza sinalizando que, com as obras de esgotamento cloacal que estão em desenvolvimento pelo Dmae, um dia toda a orla da cidade poderá voltar a ser um belíssimo balneário. Resta-nos ainda a esperança que um dia haja a reintegração completa do povo portoalegrense com a sua essência de açorianos argonautas nas margens do Guaíba, tanto os que vivem por cima quanto os que vivem embaixo das pontes da Av. Ipiranga.
          Mas enquanto isto não se realiza, precisamos continuar convivendo com os sintomas dos organismos intestinais da nossa cidade expostos pelo Arroio Dilúvio, inclusive quando ele sangra, misteriosamente tingindo-se todo de vermelho, como ocorreu no ano 2001, sem que ninguém conseguisse explicar se o arroio havia cortado os pulsos ou se foi a placenta da bolsa da esperança que havia se rompido, abortando uma maré vermelha de poluição. Enquanto não houver a separação absoluta do esgotamento público cloacal do pluvial para o devido tratamento dos efluentes, vamos continuar trilhando o esgoto a céu aberto do nosso “Caminho do Dilúvio”.
        Na última década evoluímos muito como metrópole sem metrô: seremos sede de jogos da Copa do Mundo de Futebol em 2014! Evoluímos tanto que, apesar da falta de mobilidade urbana de transportes públicos, razão do movimento nacional contra os “20 Centavos”, agora já podemos fazer exercícios aeróbicos (sem respirar fundo) pedalando ao longo dos modernos trechos de ciclovia da Avenida Ipiranga. Na Copa poderemos revelar ao mundo o nosso particular charme turístico internacional, o de vivermos à beira de um Dilúvio que se mantém biblicamente nos ameaçando de transbordar e, como castigo pela merda que fizemos com o espaço urbano sem planejamento, nos inundar na lama de nossas próprias fezes.