terça-feira, 27 de maio de 2014

Quando Avançar é Recuar

            Avançar é o curso natural do rio em sua nascente, o rio quer vivenciar todos os recantos e paisagens antes de se espraiar em um lago calmo e sereno ou, quiçá, num agitado e amplo oceano. Da mesma forma é a natureza dos relacionamentos amorosos na sua nascente da paixão, quer ocupar todos os espaços, movimentos, pensamentos, lembranças e sonhos.  Mudar o curso natural dos elementos, tanto geológicos como humanos, é uma obra que exige domínio técnico, não só de engenharia e psicologia, mas principalmente das potencialidades erosivas dos meandros dos fluxos da vida no tempo.  Reter o avançar do rio significaria exercer com determinação a nossa inteligência emocional para reprimir, nas cheias do amor nascente, as inundações vazantes para fora do leito planificado, bem como os desvios do seu curso natural. Para tanto, é preciso que se tenha domínio de parâmetros norteadores de limites e de direção em nossa bússola emocional.
         O paradoxo é que só o extremo senil do rio conhece o seu estuário destino, onde sedimentará todo o material que arrastou pelo caminho. Por sua vez, o extremo nascente do rio acredita que quanto mais novos caminhos abrir mais material terá para depositar no seu delta final, para o qual certamente todos os meandros convergem, sem saber aonde nem como. Assim, avançar no fluxo da correnteza da emoção é um estado compulsivo de ser e estar, é só surfar na onda. Todavia, apesar de toda esta apologia do Avançar, quero realmente tratar das dificuldades do Recuar contra o fluxo do rio após as inundações e os desvios de rota normais já terem ocorridos.  De como o ímpeto da paixão cria hábitos de convivências intensas, de como os hábitos de convivências criam necessidades e de como estas criam dependências, isto tudo já é um mecanismo de desvios conhecido por todos. Entretanto, após detectado o desvio, estando de posse dos parâmetros a serem corrigidos pela nossa orientação emocional, é preciso não apenas nadar contra a correnteza, mas também ir represando o fluxo, o que é muito difícil. Se fosse fácil não haveria tantas vãs tentativas e tantos divórcios relâmpagos.
             Para represar o fluxo de um relacionamento em fagocitose (um engolindo o outro), muitas vezes é preciso recuar de casados para o mecanismo de convivência dos namorados, e até de namorados recuarmos para o estágio de amantes eventuais. Esses recuos estratégicos são geralmente feitos com trovoadas e tormentas, pois há o medo de que queiramos recuar para o período em que desconhecíamos que o outro existia, e que isso seja feito com as tempestades e tufões que anunciam o fim de tudo. Geralmente nessa fase de se “Recuar nas Rotinas Diárias”, os vazios e os sentimentos de rejeição são inicialmente monstruosos, mas aos poucos passamos a nos liberar para ver os aspectos positivos deste desgrudar-se, de ter uma rotina solo, própria, mesclados equilibradamente com dias de rotina em conjunto, cada vez mais valorizados por não serem mais o rotineiro padrão nosso de cada dia.
          Naturalmente que sempre há a clássica recaída, a de se voltar a conviver em todas as rotinas durante todos os dias, atraídos pelos álibis mais variados, sobretudo  pela  carência sexual que também é recuada em seu aspecto quantitativo pelas ausências. Muito embora, em seu aspecto qualitativo, o sexo até melhore  o seu padrão, por se constituir em conquistas e não em rotinas de self-service na cama do quarto de dormir. Claro que também rola aqueles ruídos eventuais e atípicos em que se deseja e não se consegue construir o clima, devidos aos ti-ti-tis de discutir a relação  para inserir a transa sexual na agenda do dia. Mas são questões que são superadas, como fazem os namorados ou amantes: abrindo novas alternativas neste recuo na intensidade da convivência, criando novos espaços para que a intimidade conjugal não caia abaixo da performance sexual crítica e  geradora de carências mútuas na dupla evolutiva. O segredo é saber avançar curtindo o fluxo da correnteza da existência conjunta, mas sempre dosando o recuar para que represe os sentimentos mais profundo destes dois seres,  preservando-os como sendo um fetiche vitalizante do encontro amoroso entre eles. É quando o avançar é recuar.


terça-feira, 13 de maio de 2014

É, DEBAIXO DO TAPETE VOADOR

            É, inevitavelmente, chega um momento na relação em que todos os percalços do caminho, acumulados na memória emocional, provocam um estado de cansaço tal que, diante da menor dificuldade, assumem proporções instransponíveis. Então é chegado o momento de evitar-se os questionamentos daquelas questões rotineiras, repetitivas, que sabidamente vão deteriorando a relação lentamente, mas que quando questionadas à fundo passam a deteriorar a relação rapidamente.
          É chegado, pois,  o momento de selecionarmos as questões estratégicas, que necessariamente têm que ser questionadas, jogando as demais picuinhas  para debaixo do tapete. Então, é chegada a hora de reconhecermos a importância do tapete, recurso este que julgávamos extinto no universo de uma saudável e transparente relação afetiva contemporânea. Neste momento chega-se à constatação que a transparência integral entre duas pessoas é demasiadamente estressante em sua manutenção. Chega-se a conclusão de que é chegado o momento de sermos seletivos qualitativamente, por não termos mais fôlego para enfrentarmos quantitativamente todas as questões que provocam pequenas crises na rotina de um relacionamento afetivo. Os ajustes necessários para a convivência amorosa de duas consciências são infindáveis.
É, então, chegado o momento crítico, divisor de águas: de um lado os suspiros saudosos da fase da paixão, quando podemos mover montanhas alegremente; do outro lado a expectativa de um autêntico amor serenamente eterno e sem as hipocrisias das gerações dos nossos antepassados. É chegada, pois, a hora de aprendermos a gerenciar a existência do tapete de modo a transformá-lo de Lixão em Aterro Sanitário, tratando seus dejetos biologicamente, no tempo certo, sem deixar que o chorume  contamine a nossa natureza. Reciclados, estes dejetos podem resultar em fertilizantes que regenerem a paisagem de nossas relações afetivas degradadas.
É chegada a hora de nos permitirmos varrer o que não é essencial para debaixo do tapete, mas para debaixo de um tapete dotado da capacidade de voar. É, um tapete voador, como nas lendas, que ao invés de ser um pântano de problemas camuflados, passa a ser um meio poético de transporte, no devido tempo encantado, para o longínquo país da felicidade conjugal continuada.