sexta-feira, 10 de março de 2017

GAME DE RELACIONAMENTOS

                Nunca fui de jogar games no celular, sempre preferi gastar o tempo no Facebook ou no Twitter, com posts e News dos meus contatos. Mas estava de bobeira numa tarde chuvosa de verão, já tinha percorrido todas as minhas opções costumeiras, e resolvi acessar um link denominado Game de Relacionamentos. Depois de uma breve exposição de sua dinâmica, tive que definir o meu perfil de busca de relacionamento: Romântico ou predador? Relação eventual ou namoro virtual? Namoro sério ou só pra transa sexual? Transa virtual ou real?... Busca relacionamentos heterossexuais ou homossexuais ou qualquer um deles?...
                Meio assustado defini meu perfil e o game me passou para a etapa seguinte de entrada no jogo, que consiste na escolha do meu avatar, aquele personagem que será eu se relacionando com os demais personagens no ciberespaço. Feito isso, o meu avatar assumiu o controle das nossas vidas, e apenas me perguntava, como a seu subconsciente, o que é que queríamos fazer: Vamos sair ou ficar em casa jogando este game? Ok, onde vamos: Passear no Parque ou na Orla da Praia ou é de noite e vamos numa danceteria ou vamos num barzinho da Cidade Baixa ou vamos entrar num site de relacionamentos dentro deste game?...
                Curioso, sugeri ao meu avatar que fôssemos a uma danceteria, pois já faz muito tempo que não danço. Então ele nos levou num lugar que me pareceu o Chips, justamente o último lugar em que dancei alguns anos atrás (Será que o game espionou minha vida online e me localizou pelo GPS?). Entramos, pedimos um Chopp e ficamos no balcão observando o púbico nas mesas e os pares animados na pista de dança. Então o avatar rastreou uma mulher sentada sozinha, que ele identificou como preenchendo o perfil de minha preferência. Sempre com o seu celular na mão, ele enviou uma mensagem via bluetooth e ela o procurou com os olhos até identificar o autor do envio e sorriu como que consentindo com a nossa  aproximação... De imediato ele a convidou pra dançar e dançamos até suar a roupa, quando sugeri ao avatar trocar a trilha sonora de bate-estaca para um dois-pra-lá-dois-pra-cá juntinhos...
                Meu avatar, muito desinibido, coisa que eu jamais fui, aproveitou o clima romântico da nova trilha sonora e a disposição da moça personagem do game, e passamos a trocar carícias e beijos no meio do salão. Entusiasmado, como seu inconsciente malicioso, sugeri que o avatar a convidasse pra sair e irem pra um lugar mais calmo... Ele topou e ela também, fomos para um motel...
                Na entrada do motel, porém, havia uma tabuleta explicando que para acessar ao nível seguinte era preciso comprar o game completo, pois este disponível no celular era apenas uma versão demo: para continuar digite o número do seu cartão de crédito... Como nunca fui de jogar games no celular e muito menos de colocar o meu cartão de crédito em sites suspeitos de clonagens, fiquei do lado de fora do motel e não fiquei sabendo como as coisas aconteceriam com tanto realismo lá dentro daquele portal.

09/03/2017

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

MONOGRAFIA DA FELICIDADE CONJUGAL

Estou completando 22 anos de casado. Que a felicidade conjugal não é um estado permanente, como induziam os contos de fadas com o clássico final de “viveram felizes para sempre”, todos aprendem rapidamente na primeira relação amorosa real que vivenciam. A questão que se coloca aqui é a de questionarmos os poetas que tanto falam de amor, para sabermos quantitativamente por quanto tempo se é feliz conjugalmente. Com este estudo queremos saber se o estado de felicidade ocorre na maioria dos dias ou se, ao contrário, o refrão “felizes para sempre” se refere à minoria dos dias de nossas vidas afetivas em comum.
 Antes de podermos efetuar esta análise precisamos delimitar as fronteiras internas que caracterizam estágios específicos e diferenciados das relações afetivas: 1) – O estágio da paixão; 2) – O estágio de adaptações e instabilidades; 3) – O estágio do amor serenamente eterno. O universo que interessa como objeto deste estudo  é o estágio de adaptações e instabilidades, uma vez que no estágio da paixão a sensação de  felicidade é mais permanente por estarmos  dopados pelas endorfinas e que, no estágio do amor serenamente eterno, geralmente prevalecem mais os costumes adquiridos a custo de muito sofrimento no processo de adaptação, onde não sofrer passa a ser sinônimo de felicidade.
Definida caracterização genérica do nosso campo de pesquisa, é preciso estabelecer os parâmetros que identifiquem a população alvo para a aplicação do “questionário” de coleta de dados. De acordo com a sabedoria popular, que tem seus fundamentos em experiências seculares da humanidade (e os estudos psicológicos conjugais os confirmam), há notoriamente uma chamada “crise dos sete anos” em que muitos casais se separam e outra crise aos dez anos de convívio. Para fins práticos vamos adotar como parâmetros do estágio de adaptações e instabilidades do nosso grupo de estudos os casais que tenham entre sete e doze anos de relacionamento afetivo-amoroso.
 Nosso objeto de investigação, portanto, é definido como casais em permanente “estado de crise”. Em um grupo amplo destes casais, todos de classe média, fizemos uma sondagem expedita, perguntando simplesmente qual é a relação entre a quantidade de dias ruins, dias regulares e dias ótimos na relação do casal, e qual o critério que utilizam para efetuar esta avaliação de qualidade. O resultado desta sondagem, que adotamos como nossa hipótese inicial, foi surpreendente: 3 dias ruins e 3 dias regulares para 1 dia ótimo na semana. Quanto aos critérios para esta avaliação, sistematizamos que em geral os casais relacionavam como ruins aqueles dias em que os corpos e os olhares estavam se repelindo (repulsão), como dias regulares aqueles em que os corpos e olhares estavam indiferentes (neutros) e como dias ótimos aqueles em que os corpos e os olhares estavam se atraindo (atração), nos quais havia troca de carinhos, ereções e ou sexo com orgasmo unilateral ou de ambos.
Deste objeto de investigação selecionamos um grupo mais restrito para aplicarmos o instrumento de coleta de dados, o qual consistia em anotar diariamente numa planilha como cada um avaliava o seu dia de convivência conjugal, segundo os critérios sistematizados. A pesquisa se desenvolveu ao longo de quatro meses (16 semanas), buscando agregar um perfil bem significativo do comportamento médio dos casais.
Como resultado da aplicação deste instrumento, pudemos quantificar dois aspectos inter-relacionados que constituem a sensação de felicidade conjugal, quais sejam, o humor e a sexualidade do casal. No aspecto do humor, constatamos uma média de 28% dos dias como em estado de repulsão, 35% como dias neutros e 37% como dias em estado de harmonia e atração conjugal. No aspecto da sexualidade verificamos uma média total de 24 relações sexuais por casal no período, o que implica uma média de 1,5  relações sexuais por semana, sendo que em 70%  dos atos sexuais houve orgasmo tanto masculino como feminino, e  em 30% houve apenas o orgasmo masculino.
A conclusão deste ensaio ficcional de monografia sobre a felicidade conjugal contrariou a hipótese inicial, resultante da sondagem expedita que indicava que o relacionamento afetivo do sujeito da investigação apresentava 3 dias ruins e 3 dias regulares para 1 dia ótimo na semana. Verificou-se que esta relação está bem mais equilibrada, havendo um ligeiro predomínio da quantidade de dias neutros (35%) sobre os dias de repulsão (28%) e, principalmente, invertendo a hipótese inicial, com a predominância dos dias felizes de atração (37%) sobre os demais estados de humor da relação afetiva. Verificou-se que a relação conjugal é quase de um dia ruim, para um regular e para um ótimo.
Por fim, voltamos à questão colocada inicialmente, de se saber quantitativamente por quanto tempo se é feliz na vida conjugal, isto é, se o estado de felicidade ocorre na maioria dos dias ou se é ao contrário. O clássico “felizes para sempre” constatamos que não se realiza na maioria do tempo, pois que se verificou que a felicidade ocorre em 37% dos dias. Mas a questão inicial também não pode ser respondida como se a felicidade ocorresse na minoria do tempo, cerca de um terço dos dias apenas. Seria preciso considerar a perspectiva do estágio seguinte das relações, o do amor serenamente eterno. Nesse estágio, para o qual todas as relações longas se dirigem inexoravelmente, os estados neutros de humor não constituem sofrimento e logo não podem ser computados como o oposto da felicidade.
Portanto, nesta perspectiva a longo prazo, estatisticamente os dias felizes realmente passam a ocorrer na maioria no tempo da vida conjugal, o que justifica metaforicamente o encantado final feliz: E viveram felizes para sempre...na trilha dos ajustes intermináveis que levam ao amor serenamente eterno.

A Mulher do Poeta está no Brechó, espie aqui!




terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A CONQUISTA DA REDENÇÃO

-Com licença, posso sentar?... Bonito dia!...O banco de praça é o melhor local para percebermos a primavera. Mas também não é em qualquer praça, pois é preciso que haja jardins para florirem, árvores e pássaros. Lamentavelmente a maioria de nossas praças, hoje em dia, não têm nem bancos. As gramas e capins são o máximo de contato com o verde que os modernos urbanistas planejam para as nossas crianças... Peço que me desculpes, mas nem sempre sou tão falante assim. Em verdade sou até bem calado, tímido mesmo. Talvez seja a primavera e este céu de brigadeiro que, especialmente hoje, me trazem lembranças dos meus primeiros passeios por este parque. Quando criança vinha em companhia da minha mãe para ver os bichos do mini-zoológico. Eu era louco pelos macacos, por andar nos pedalinhos do lago e por dar pipoca para as carpas. Era tempo dos bondes ainda; parece mentira, mas já passei muitas vezes de bonde por aqui. Havia uma rua que atravessava o parque por ali, na altura da   República, desde a João Pessoa até a Oswaldo Aranha. Depois construíram o Túnel da Conceição, o homem foi à lua, os bondes sumiram, e eu passei a vir neste parque para alugar bicicleta para aprender a andar...
 -Talvez eu esteja sendo chato, inoportuno até. Mas alguma coisa me diz que o teu coração está triste, carente de um papo louco para descontrair. Eu sei bem do que são capazes as tristezas desta vida, por isto mesmo aprendi a buscar a mensagem positiva das histórias contadas. Sabe, na minha pré-adolescência não tive nenhuma namorada, não era esta facilidade de hoje. A gente tinha que se virar literalmente sozinho. Como estimulante visual costumava frequentar, nesta época, aquele gramado com arbustos que fica lá, entre o Auditório Araújo Viana e o chafariz, para ver os casais de namorados que, aos domingos, transformavam aquele recanto na Praça dos Prazeres Amorosos. Embaixo de cada arbusto hospedava-se um casal, como se fossem motéis ao ar livre, sem a privacidade necessária para irem às últimas consequências. Depois, já adolescente, vinha para a Redenção nos fins de semana para caçar namoradas. Nunca fui muito eficiente nisto, mas foi aqui que conheci a menina com quem tive a minha primeira transa. Foi uma coisa meio atrapalhada, meio acidentada, mas que finalmente aconteceu. Não aguentava mais me virar sozinho! Nesta época também jogava bola nos campinhos de areião do Ramiro Souto, nas típicas peladas do pessoal que ia chegando e se escolhia "tantos pra cada lado". Ramiro Souto é nome oficial daquele parque esportivo que tem lá do lado do Auditório Araújo Viana, perto do parquinho de diversões. Lembro muito bem de duas figuras lendárias, operários da recreação pública, que trabalhavam naquele parque: O Marechal, que era o instrutor da garotada, e a Tia, uma querida preta velha que acompanhava os velhos e os novos frequentadores...
-Não penses que toda esta conversa é apenas uma cantada desajeitada de um quarentão numa linda mulher triste num banco de praça, é muito mais. Este é um momento mágico e pré-destinado astrologicamente, o destino nos reuniu aqui. Como lembraremos deste momento, quando formos velhinhos, se nossos caminhos se unificarem? E se nossos caminhos nunca mais se cruzarem, será que lembraremos deste momento?... Sabe, há momentos em que o mundo parece rodar mais rápido. Foi o que aconteceu a partir da minha adolescência, veio o movimento hippie e me arrastou: Woodstock, drogas e rock-in-roll. Assim mesmo, quando não estava com a mochila nas costas e o pé na estrada, vínhamos curtir a lua e tocar violão nestes bancos da periferia da Redenção, nosso Central Park, uma verdadeira conquista urbana da comunidade. A violência era menor, não tínhamos medo da noite. Na madrugada íamos comer um cachorro quente especialíssimo no "Zé do Passaposte", lá na ponta do Mercadinho do Bom Fim. Tudo na maior "paz, amor e liberdade"...
 -Depois, tu sabes, fomos ficando iguais aos nossos pais, responsáveis e tristes pelos bancos das praças da vida. Casei. Não sei se é este o teu problema, mas foi o meu durante um longo tempo. Evidente que houve um período bom em que vínhamos juntos à Redenção, ao Recanto Chinês, e namorávamos acintosamente em público. Com o tempo não namorávamos mais nem na intimidade, apenas saciávamos nossos apetites biológicos. Sem fé em seres superiores, busquei consolo na militância política. Época da redemocratização do país e da efervescência sindical, quando realizamos grandes assembleias dos municipários no Araújo Viana. Inclusive houve uma assembléia com a presença do último prefeito nomeado pela ditadura, o João Dib,  que ficou muito surpreso ao ser enfrentado e saiu literalmente corrido do auditório. Na campanha eleitoral da primeira eleição direta para governador o Brique da Redenção já se constituía num pólo de aglutinação das vanguardas políticas da cidade, onde concentrávamos nossas atividades de agitações dominicais...
-Foi por ali, também, nos áureos tempos do Bar Escaler, que assisti pela primeira vez um casal homossexual masculino, aos longos beijos de língua, naturalmente, em uma mesa ao lado... Seus olhos são verdes? Castanhos?! São bonitos, expressivos. Seu sorriso também, é contagiante. Deves sorrir mais freqüentemente. Tudo bem, não precisa encabular. Sinceramente confesso que estou nervoso, não consigo parar de falar e, ao mesmo tempo, não consigo falar o que realmente eu gostaria de te dizer... Sabe, havia um mini-zoo que ficava lá na beira dos prédios da faculdade. Durante o meu curso de engenharia, nos recreios e nos períodos vagos das aulas de química e física, costumava vir fumar curtindo os animais no parque. Mas concluíram que lá havia muita poluição e que o tráfego dos veículos prejudicava a saúde dos bichos e, por isto, sumiram com os bichos do Parque da Redenção, dito Farroupilha. Aquele local antigo era interessante pelo fato de permitir que as crianças vissem bichos de verdade fora dos seus games e que os passageiros dos ônibus pudessem observar, diariamente, macacos, araras e lobos antes de irem para o trabalho...
- Não és casada? Pois eu já fui. Ainda bem que aprovaram o divórcio neste país, pois assim podemos repetir o erro até acertar, até encontrarmos a outra metade, a alma gêmea complementar. Apesar de nem se usar mais casar, resta sempre o recurso do divórcio para quando se cai em tentação. Como vês, estou disponível e carente nesta busca da companheira ideal, saindo a campo quando recebo uma sinalização positiva da minha intuição. Quer dizer...estou disponível em parte. Tenho duas filhas, com as quais costumo frequentar a Redenção, para andar de trenzinho e brincar no parque de diversões, repetindo o ciclo da vida portoalegrense com a nova geração...Sabe, eu gostaria de te convidar para tomarmos um sorvete no Lamby's, lá perto do Luar, mas estou achando que vou passar o resto do dia falando sozinho e que não vai dar em nada...??? -Uau!... Você sabe ser sintética e convincente. Este beijo que você me deu eu não vou esquecer nunca mais: IABADABADUUU!...

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O PACTO DE HARAQUIRI DOS NOSSOS FILHOS

A expressão colocada acima, no título do texto, terá sido um bom título se conseguir passar de antemão a ideia de que o texto vai tratar do seu título, ou seja, vai esmiuçar a conexão que o título deve ter com o conteúdo do texto. No caso aqui, o título parece indicar que o texto vai tratar sobre a morte, a partir do seu enfoque simbólico no haraquiri. Claro que a morte é um espectro muito amplo, vai desde as questões físicas e emocionais, até as transcendentais religiosas e as metafísicas filosóficas. “A Morte na Juventude”, por exemplo, propõe um tema bem diverso do que “A Morte na Velhice”, mas ambos títulos já seriam eficientes o bastante para restringirem a visada de modo a delimitar que um ou outro assunto o leitor iria encontrar na abordagem do texto.
Ainda assim, mesmo “A Morte na Juventude” pode tratar de inúmeros recortes, como as mortes de jovens causadas por doenças, ou por envolvimento com drogas em acidentes de trânsitos, em assassinatos, bem como por suicídios. Um bom título deveria fechar mais o foco, tipo assim: “A Morte por Suicídio na Juventude”, sob o qual o leitor esperaria encontrar informações estatísticas e geográficas da ocorrência deste fenômeno social. Com este título o leitor acharia natural ficar sabendo que no Rio Grande do Sul há o mais alto índice de suicídios do país, maior do que o dobro da taxa do Brasil, e que alguns municípios gaúchos têm índices superiores aos dos gelados e sombrios países escandinavos que são os campeões em depressão no mundo. Talvez o leitor até se alarmasse um pouco em saber que cerca de 25% dos suicídios praticados por aqui, na região do pampa e da “Estética do Frio” (onde a pressão por “ser alguém na vida” é maior, devido à influência da colonização europeia), são de suicidas jovens com menos de 30 anos.
Sob este título o leitor poderia ficar sabendo que muitos adolescentes manifestam em redes sociais a solidão e abandono em que se encontram, e anunciam que vão se suicidar, em gritos sem ecos, pois ninguém acredita ou entende. Ou que, pelo contrário, há casos de suicídios assistidos e incentivados pela internet.  O leitor talvez nem quisesse ficar sabendo dos detalhes sórdidos: que o consumo de pesticidas, o enforcamento e as armas de fogo são os métodos mais comuns adotados. Mas, passivo às informações textuais, pelo menos o leitor ficaria sabendo que esta é uma tragédia silenciosa que não dá nos jornais. Não há divulgação por tabu e por medo que notícias diárias de ocorrências acabem incentivando ondas de suicídios entre as tribos urbanas e entre os lavradores interioranos.


Recentemente, porém, este tabu foi rompido no caso de um pacto de suicídios entre adolescentes na serra gaúcha, quando a morte de duas meninas e o ferimento de outras três que cortaram os pulsos, ganharam as manchetes das capas dos jornais por vários dias. Naturalmente que os pais não notaram nada de estranho nos comportamentos das suas filhas e foram surpreendidos pela tragédia.  Uma notícia chocante assim nos faz perceber que ninguém está livre, com tantas atribulações em nossas correrias diárias por “comida, diversão e arte”, de sofrer esta cruel cilada do destino com um dos nossos próprios filhos. Deus nos livre e proteja, amém!
Suicídios são os haraquiris dos psicóticos tempos modernos globalizados, caro leitor, hoje realizados em rituais discretos. Nós, os pais nascidos na era do rádio e que vivemos desatentos entre tantas informações em rede, muitas vezes sequer percebermos as que realmente são relevantes para as nossas vidas no momento certo, só tardiamente quando Inês já é morta: e o diabo que nos carregue!
 Mas, analisando bem, o título sugerido “A morte por suicídio na juventude” não teria ficado muito bom, teria ficado mais para uma tese psiquiátrica ou policialesca. Sob o título de O Pacto de Haraquiri dos Nossos Filhos, acabamos apresentando ao leitor um texto sobre a morte por suicídio no recorte de um determinado segmento etário e próximo de nós: os nossos jovens gaúchos. Assim, no final descobrimos que o título é, ou pode ser, um texto à parte. O título tem que sugerir conteúdo mas, ao mesmo tempo, também pode ser a conclusão confirmando ou negando o texto; ou até mesmo ser uma abstração poética, a cereja do bolo.
 Talvez o melhor título para este texto teria sido “O Pacto de Suicídio dos Nossos Filhos”, pois incluiria o tema principal (o suicídio) no título como uma manchete sobre um pacto dramático envolvendo os filhos do leitor. Mas a palavra suicídio é tabu até para servir de título, imagine dos nossos filhos, nem pensar.  Por isso amenizamos o título com o seu equivalente oriental, tido como um pacto heroico dos samurais, cujo nexo o leitor só irá perceber nesta última frase, no haraquiri fulminante do autor cravando o ponto final que causa o fim de todos os textos sob qualquer título.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A tragédia de envelhecermos como potenciais suicidas

O Brasil é o oitavo país com mais casos de suicídios, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Estado do Rio Grande do Sul apresenta a maior incidência de suicídios do país, mais de mil casos por ano.  Entre as capitais, Porto Alegre apresenta o maior índice de suicidas. Este assunto é tabu na mídia, desde a publicação do livro O Sofrimento do Jovem Werther, de Goethe em 1774, em que o herói se mata e que teria incentivado uma onda de suicídios entre os jovens europeus. Recentemente o assunto esteve na mídia mundial com o ator de cinema americano Robin Williams, que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante pelo filme Gênio Indomável, e protagonizou outros tantos sucessos, como Amor Além da Vida e Sociedade dos Poetas Mortos, que aos 63 anos cometeu suicídio por enforcamento.  O meu interesse, como integrante que sou de um grupo de alto risco (por ser gaúcho, portoalegrense e idoso), é focar no fato de que a maioria das pessoas que cometem suicídio tem mais de 50 anos, e que os homens comentem o dobro de suicídios do que as mulheres. Sou, portanto, um suicida em potencial?
 Hoje em dia, a maioria das famílias não tem tempo ou estrutura para cuidar dos seus idosos. Todos têm de trabalhar e os deixam sós ou os colocam em clínicas geriátricas.  Embora eu recém agora, em 2014, entrei no jardim de infância da terceira idade, quando me tornei um sessentão do terceiro milênio, já estou fazendo intensivo aprendizado em geriatria, tipo residência médica, com a minha mãe que completou 90 anos. Mesmo sem nenhum AVC, mas como quase todo mundo depois dos oitenta, ela já sofre as agruras das dores generalizadas do final de carreira, as quais estou acompanhando e prestando bastante atenção, e tentando amenizar no que for possível. Estou ligado neste tema por saber que a “barreira dos oitenta”, da quarta-idade, é o próximo grande rito de passagem na vida de um aposentado, depois da qual já estamos no lucro ou no prejuízo, gozando ou pagando as multas pelos excessos cometidos nas fases anteriores.

No ano passado o grande ator Walmor Chagas, gaúcho e idoso como eu, aos 82 anos de idade suicidou-se em sua chácara, com um tiro na cabeça. Segundo o psicanalista Mário Corso, uma das razões do silêncio sobre o tema do suicídio é por temermos a pergunta radical que é feita pelos que desistem: por que mesmo vale a pena seguir vivendo?  No caso, o suicídio foi por depressão na velhice extrema. Walmor vivia praticamente isolado. Enxergava mal, tinha dificuldades para andar, se alimentava pouco e precisava da ajuda de empregados para executar tarefas cotidianas. As limitações típicas da velhice são o principal detonador dos casos de depressão entre idosos. Em alguns casos, a pessoa requer auxílio até para fazer a própria higiene. É uma fase de difícil aceitação, e há quem jamais a aceite e recorra a atitudes extremas para escapar.
Até os 85 anos a minha mãe, Dona Ciça, ainda mantinha a sua casa, morando sozinha e sendo o centro de convergência dos filhos, netos e bisnetos dispersos pelo mundo. Até que tonturas e vertigens breves incutiram o medo de ela ficar sozinha no apartamento durante as noites; depois alguns lapsos eventuais de esquecimentos de panelas no fogão com o fogo aceso foram minando a segurança da viúva matriarca. Então Dona Ciça passou a viver num pensionato de idosas, como num apart-hotel, ainda mantendo um espaço privado com suas coisas num cômodo amplo, e compartilhando com outras velhinhas as áreas comuns de banheiros e refeitório. Livre das tarefas domésticas de fazer compras, estocar alimentos, cozinhar e fazer faxinas, finalmente quem sempre serviu passou a ser servida.
Contudo, sem ter acesso mais ao fogão, a Dona Ciça perdeu o domínio do fogo, o que foi bastante simbólico na decrepitude de uma ex-cozinheira de restaurante. A surdez foi fazendo com que ela não conseguisse mais acompanhar as tramas das telenovelas nem as conversas em volta de si (mesmo com um aparelho auditivo). A catarata foi lhe roubando a visão e limitando a sua capacidade de fazer crochê e de ler o jornal diariamente, atividades que eram as suas ocupações prediletas.
 Há de envelhecer-se, mas sem perder a autonomia jamais. Manter a sua autosuficiência passou a ser a principal preocupação da Dona Ciça, pois ela sabia que “se caducasse demais” seria preciso que ela migrasse do pensionato para a clínica de geriatria, que é um ambiente hospitalar, terminal, deprimente e, por ser muito caro, dá ao velho a sensação de vir a ser um estorvo para os filhos... Hoje, alguns anos depois, menos por caduquice e mais por debilidade física, faz poucos meses que a Dona Ciça foi, contra a sua vontade, para uma clínica geriátrica; pra lá vamos todos? É a temível última fase do game da vida: a velhice extrema.
A Dona Ciça resiste em aceitar que perdeu completamente a autonomia sobre o seu próprio corpo, até mesmo das funções fisiológicas. Resiste em se adaptar à circunstância de ser cuidada, banhada, vestida, conduzida, alimentada, medicada e deitada por estranhos que determinam quando e como deve sentar, levantar ou deitar. Diante da resistência da Dona Ciça, na maior parte do tempo lúcida, mas com algumas alucinações e crescentes apagamentos de memória, sempre lembro a todos os meus irmãos que devemos aproveitar esta experiência da revolta e indignação dela como um aprendizado para as nossas vidas: todos já somos idosos (eu sou o caçula) e estamos no rumo da velhice extrema. Pra lá vamos!
 A resposta de todos a quem comento o caso, não só dos filhos da Dona Ciça, tem sido de que ninguém quer viver tanto, que vão morrer antes da velhice extrema. Retruco que, Deus os ouça, mas querer não é poder, é mais não querer ver como vai ser se sobreviverem até lá...A não ser que, inconscientemente, queiram fazer como o casal de velhinhos suicidas do filme Amor (que narra a decrepitude da vida na velhice e ganhou o César 2013 - espécie de Oscar francês), os quais passaram por caminhos bem espinhosos, com dor, AVC e perda da identidade. Encurralados pela solidão da velhice também eles preferiram, como Robin Williams e Walmor Chagas, precipitar o término da jornada existencial sem esperar pelo doloroso fim natural. 
                 A tragédia silenciosa de envelhecermos ao extremo nos transformará a todos em potenciais suicidas?...

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

TRISTES TRÓPICOS: A BOLA CORRE MAIS DO QUE OS HOMENS

Todo mundo ficou sabendo que os jogadores da seleção alemã visitaram a aldeia dos índios pataxós, perto de Monte Pascoal na Bahia, onde o Brasil foi “descoberto” para pilhagens internacionais desde então. A repercussão deste encontro foi tão grande que os campeões da Copa do Brasil da Fifa comemoraram com a dança dos índios pataxõs em frente ao Portão de Brandemburgo em Berlim, além de fazerem uma gozação com a dança dos “gauchos” argentinos.  O que pouca gente ficou sabendo, porém, foi da eficácia simbólica do feiticeiro da tribo, o amuleto secreto dos alemães que foi tratado como segredo de estado. É sabido que o Xamã pataxó tem na sua magia carismática o poder de organizar o universo com a realidade, conforme os rituais e mitos da comunidade.  Consta que a simpatia dos alemães, junto com os seus propósitos de financiarem ONGs de defesas socioambientais e  indigenistas, cativaram os pataxós de tal forma que o Xamã, sem entender nada do que é o tal futebol,  se comprometeu a sair, pela primeira vez na vida, de sua aldeia para assistir e torcer por eles contra aqueles que se dizem ser os brasileiros, e que querem tomar as terras indígenas para o agronegócio.
 O ocorrido naquele fatídico dia do “Mineiraço”, tido como o maior vexame nacional desde a invasão das caravelas portuguesas para saquear o nosso ouro, em que o selecionado pentacampeão do mundo sofreu a pior derrota de sua história, por 7 a 1,  para a Alemanha e foi eliminado na semifinal da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, é já parte da história global. Mas como é que este feito inacreditável aconteceu, e como se pode começar a explicar o inexplicável, é o que vamos fazer a partir de agora, através desta reportagem investigativa, seguindo as pegadas do Xamã pataxó naquele dia.
O indígena, feito um alienígena antropológico, entrou num avião e voou por sobre as nuvens, viu suas matas e rios se afastarem, e foi mergulhando numa floresta de concreto até aterrizar numa aldeia remota, com ocas empilhadas umas sobre as outras, cuja tribo estava toda reunida em uma estranha atividade festiva numa gigantesca arena. Antes de chegar lá, no caminho do aeroporto até o estádio, pareceu ao Xamã estar entrando numa cidade abandonada, com grandes avenidas silenciosas e sem ninguém; mas também sem mortos nem feridos. Entretanto, nas proximidades do local do evento para o qual se dirigia, pareceu ao Xamã estar entrando num campo de batalha, onde duas tribos se enfrentavam em luta campal e em perseguições a pé e a cavalo, com armas de fogo e espadas. Uma das tribos, a que usava capacetes com viseiras e escudos, atacava com tacapes e jogava bombas de gás nos membros da outra tribo, os quais vestiam roupas pretas e usavam máscaras no rosto para se protegerem dos ataques, e mantinham sempre hasteadas faixas com os estranhos dizeres: Queremos obras de mobilidade urbana de massa, hospitais e escolas também padrão Fifa! #NÃOVAITERCOPA!
Naturalmente que, como convidado especial, da categoria VIP-Exótico, o feiticeiro pataxó estava sendo obsequiado com um serviço de pacote completo de vassalagem para recepção e traslado, cujo receptivo era dotado de tradutores poliglotas e de crachás Padrão Fifa, que abriam qualquer barreira de policiais ou bloqueio de manifestantes. De forma que, momentos antes do início do espetáculo que o país inteiro estava ansiosamente irmanado para assistir pela TV ou ao vivo, o Xamã estava sendo introduzido na arena do Mineirão com toda a sua expectativa e curiosidade de índio do século XXI, louco para entender que ritual é este do futebol que cultiva crentes fundamentalistas em todas as nações do mundo.
Quando o pataxó entrou nas arquibancadas do estádio e viu aquela multidão de cabeças, milhares de pessoas sentadas em círculos em torno do gramado, como se estivessem numa imensa taba, quase entrou em transe com os seus espíritos curandeiros da floresta. De imediato viu sua imagem ser projetada nos diversos telões nas arquibancadas, com o locutor elogiando a autenticidade e a estampa exótica  da figura de um verdadeiro índio brasileiro que se juntava a todo o povo para torcer pela sua pátria, pela seleção do seu coração... Xamã não sabe, mas sentiu-se um personagem de literatura antiga, pois na literatura romântica brasileira transitaram personagens desde o mau selvagem e o bom civilizado, até o bom selvagem e o mau civilizado. Fomos de Ceci e Peri, em que índio com mulher branca não rolou direito, não deu cria; mas de  Martim e Iracema nasceu Moacir, o primeiro brasileiro filho de branco com índia, no Ceará da ficção literária de José de Alencar. De lá pra cá, houve um apagamento dos índios da história deste país, acabou o romantismo e começaram as disputas por suas terras para o progresso da nação.
 Depois do hino brasileiro cantado à capela pela torcida e jogadores a todo pulmão, o juiz deu início ao jogo e a bola começou a correr..  O Xamã pataxó compreendeu desde o início que a cor dos fardamentos definia as diferentes tribos em confronto, e que manter o domínio da bola com os pés e conduzi-la  até às redes do adversário era o objetivo da competição. Embora parecesse meio esquisito assistir onze guerreiros de cada lado correndo atrás de uma bola, com contatos violentos entre eles, o pataxó conseguiu identificar semelhanças com as atividades esportivas indígenas, como o zikunariti que a bola é jogada  com a cabeça, ao invés dos pés.
Até os nove minutos iniciais da partida o pajé pataxó ficou admirado com a dança habilidosa dos atletas em manobras com a bola em passes de um para o outro, procurando não perder o seu domínio e buscando colocá-la no fundo da rede da goleira adversária. Então, o Xamã resolveu testar seus poderes xamânicos, temeroso neste ambiente tão diverso do que até então praticara seus feitiços mágicos que eram famosos inclusive em outras nações indígenas. Sacou do bornal o chocalho de palha com penas coloridas e grãos feitos de sementes, ossos e pedras, e o agitou soltando o seu cântico de pedir a atenção dos grandes espíritos antepassados do seu povo, enquanto saltitava trocando de pé de apoio.
 Eis que parte do público do estádio, parecendo entrar em sintonia com o seu xamanismo, explodiu em grito de gol. Justo naquele momento acontecia o primeiro gol para a Alemanha. O índio pataxó ficou um pouco assustado com o resultado imediato das suas magias, duvidando até do seu próprio poder em circunstâncias tão adversas das habituais.  Depois ele esperou por cerca de doze minutos, para ver se aconteciam gols sem a sua interferência. Então resolveu testar de maneira mais conclusiva o seu poder de influência com os espíritos e pôs-se  a chocalhar e soltar seus cânticos mais poderosos por cerca de seis minutos ininterruptos. O público, cada vez em maior número, parecia entrar em ressonância e, em transe, não paravam de gritar gols, como numa catarse coletiva que acabou envolvendo as duas torcidas das tribos em confronto. Quando tudo silenciou novamente e o Xamã saiu do seu transe místico, olhou para o placar no estádio e o jogo já estava  5 a Zero para a Alemanha. Ouviu comentarem na sua volta que tinha havido um estranho apagão no selecionado canarinho, e a torcida brasileira passou a vaiar muito a sua equipe até o final do primeiro tempo.

Outras organizações e federações estaduais de futebol também tiveram a brilhante idéia de convidarem seus indígenas, não tanto para assistirem, mais para serem vistos nos televisionamentos das redes mundiais, e assim completarem o quadro da mestiçagem da “fábula das 3 raças: branco, negro e índio” que minimiza o dissimulado racismo brasileiro. Mas, como é de hábito cultural herdado do colonialismo português, foram convidados apenas os caciques da cada nação indígena. No estádio era muito cacique para pouco índio, pois de índio não cacique mesmo só tinha o Xamã pataxó no Mineirão, e convém lembrar que ele estava lá a convite dos alemães.
Foi assim que, no intervalo da partida, a indiada se reuniu para fumar um cachimbo da paz, com erva da boa trazida legalizada  pela delegação do Uruguai, trocar emails, e saber das novidades das aldeias tupiniquins. Xamã ficou sabendo que os homens brancos dizem que o Brasil dispõe de muita terra para pouco índio (estimados em 800 mil índios em 35 etnias!). Soube também, por um cacique da nova geração, formado como antropólogo, graças ao acesso à universidade através das cotas destinadas às minorias excluídas, que 99% das terras destinadas para os indígenas estão na Amazônia (do tamanho do RS + SC + Pr + SP + RJ + Es), mas que 52% dos índios vivem fora de lá, vivem no 1% de terras restantes. Eis o problema antropológico, os  índios tem vínculos metafísicos milenares com a terra onde viveram seus antepassados, não servem outras terras quaisquer.  
Não é o caso dos pataxós, mas não é fantástico que ainda existam tribos de índios isolados na grande Selva Amazônica, sem contato com os brancos e vivendo igual a mais de 500 anos atrás, nus e sem gripes? E não é medonho que ainda continuamos querendo extingui-los de vez?!... Enquanto seguimos atropelando os tratores do progresso civilizatório sobre eles, cada vez mais aumenta o discurso de culpabilização dos indígenas por estarem “aculturados”, por 40% dos índios estarem urbanizados.
 O que grande parte da torcida da arena lotada não sabe é que ser índio é bem mais do que usar um cocar, é uma forma de entender o mundo. Os torcedores não sabem que mesmo urbanizado, com calças de jeans e celulares, ele continua sendo índio, desde que mantenha o elo harmônico com a natureza e com a cultura do coletivismo igualitário, própria do terreiro da sua aldeia indígena, e com os valores de seus ancestrais.

Iniciado o segundo tempo do jogo, o pataxó resolveu evitar de influir no resultado no jogo. Ficou cerca de meia hora se segurando e nada acontecia, depois decidiu testar se era ele mesmo que estava com esta força toda de fazer até a chover se quisesse. Chacoalhou o chocalho e puxou seus mantras nativos por apenas cinco minutos. Novamente as torcidas se agitaram e quando ele parou ficou sabendo que havia ocorrido mais dois gols alemães, e que a partida já estava 7 a zero. Xamã ficou pensando que tinha abusado de seus poderes, que havia pesado demais a mão no chocalho e favorecido apenas um lado da disputa. Sem ainda acreditar que um simples índio teria tantos poderes no mundo dos brancos, resolveu recorrer a uma provação definitiva. No finalzinho do jogo, sacudiu o chocalho e puxou o seu cântico xamânico aos pulos e rodopiando, só que desta vez a favor dos brasileiros: foi quando saiu o gol de honra do Brasil aos 45 minutos. Não restava mais dúvidas, Xamã herdara a poderosa força  do xamanismo do seu Mestre.
Agradecido, o Xamã lembrou dos ensinamentos do seu grande Mestre Pajé pataxó, antes dele fazer a sua derradeira viagem para se juntar ao Cacique Raoni, numa reunião das comunidades indígenas. Evento este em que o Pajé acabou morrendo, num confronto para combater a construção da hidroelétrica de Belo Monte e salvar as tribos que vivem na Volta Grande do Rio Xingu, no Pará. O Mestre feiticeiro pataxó era viajado nas diplomacias e traiçoeiragens dos brancos. Sempre era chamado para participar dos conselhos das nações indígenas, desde dos caigangues no sul até dos mundurukus no rio Tapajós no norte.
Inclusive esteve no oeste dando assistência aos Guarani-Kaiowá, quando da ameaça que houve de  suicídio coletivo dos índios em protesto a ordem judicial de despejo de suas terras. Nos seus ensinamentos, o Mestre do Xamã pataxó costumava dizer, no seu jeito peculiar de misturar a língua tradicional indígena com o português, que a civilização dos brancos ainda acredita que a sociedade deles é superior a dos índios. Eles que já extinguiram grandes civilizações, como as dos Maias e Incas, e dezenas de milenares etnias brasileiras, acreditam que todos os povos indígenas um dia vão “evoluir” para o modelo de vida consumista deles, ao que costumam chamar de etnocentrismo e de paradigma do evolucionismo clássico.
 Porém, dizia o Mestre, as nações de índios brasileiros que aqui já viviam antes desta terra ser invadida pelos europeus, sempre souberam que cada sociedade evolui dentro de sua cultura de forma particular, visando apenas o funcionalismo de atender às necessidades humanas em harmonia com o ambiente global. O civilizado colonizador destruiu o paraíso que encontrou por ser “primitivo” e construiu em seu lugar a sociedade do individualismo. Por fim, o Xamã  lembrou que o Mestre costumava encerrar suas pregações tribais dizendo que a civilização ocidental, com todo o seu progresso tecnológico produzindo excluídos sociais com miséria e violência, é hoje uma sociedade mais atrasada e primitiva dos que as dos indígenas. Os brancos são incapazes de estabelecer o elo harmônico de pertencimento que os índios têm com a mãe terra, graças ao hábito dos indígenas de terem mantido, a duras penas, a cultura sustentável de seus antepassados.
Perdido em seus pensamentos, o Xamã pataxó saiu do estádio ouvindo as vaias ao time nacional e o comentário de que havia acontecido o Mineiraço, e que aquele vice mundial ganho com a derrota para o Uruguai, em 1950 no Maracanaço, apesar de lamentado por 64 anos, seguirá como o melhor resultado da seleção brasileira em Copas disputadas no Brasil. O Xamã sentiu um gostinho de vitória, como se estivesse vingando a morte do Mestre e de tantos índios que têm morrido nos conflitos por terras, assassinados  nas frentes armadas do agronegócio, frentes agrícolas e de criação de gado que avançam mata adentro, destruindo a floresta e a biodiversidade animal, bem como o pouco que restou da cultura original dos verdadeiros donos desta nação. Destruindo as reservas indígenas, com ou sem demarcações legais, a ferro e fogo.
 Aturdido pela repercussão dos acontecimentos em que acreditava ter sido um protagonista, apesar de não ter entrado em campo e não ter feito nenhum gol, o Xamã pataxó decidiu voltar de imediato para a sua aldeia  Quiz esquecer de vez esta fanática religião financeiramente esportiva à serviço da politicagem de acomodação das lutas sociais que é o futebol. Igual ao Xamã, é o que também sugere o antropólogo Roberto DaMatta, dizendo que o futebol no Brasil é um “fenômeno social total” da sociedade brasileira, por articular a estrutura social, cultural,  política, econômica, religiosa e a identidade nacional. Da Matta é autor do livro A Bola Corre Mais Que Os Homens. E foi o que concluiu também o índio Xamã pataxó, quando não aceitou o convite dos alemães para assistir ao jogo da final com a Argentina, e muito menos ao convite posterior de ir até a Alemanha comemorar com eles o tetracampeonato no Velho Mundo: A bola corre mais do que os homens!

A bola corre mais por fora, entre as empreiteiras e os governos, entre a CBF e a Fifa, entre as federações e as redes de televisões. A bola corre mais do que os homens das polícias civil, militar e federal juntas com os da justiça. A bola corre mais do que os homens da política e que os das religiões. A bola da ganância corre mais do que os homens de todas as nações, não temos mais como pará-la. Seremos todos (brancos, índios, pretos e amarelos) engolidos por ela como numa bola de fogo que cresce até destruir com o planeta e torná-lo  um buraco negro no espaço. Tristes trópicos: #PERDEUFEIOSUACOPA!