segunda-feira, 28 de abril de 2014

O MUNDO ENCANTADO DOS DEVANEIOS

        No filme Noé (interpretado por Russell Crowe), o personagem bíblico recebe a revelação de que o ser humano se tornou irremediavelmente pecaminoso. Então, Noé (filho de Matusalém, interpretado por e Anthony Hopkins) entendeu que a vontade divina era de que toda a raça humana fosse destruída no dilúvio anunciado. Como membro da raça racionalmente pecadora, Noé foi o escolhido para conduzir a transição do aguaceiro como sendo mero construtor da arca e condutor épico da salvação dos demais seres vivos. Mas inclusive ele e a sua própria família (mulher e três filhos homens) também seriam extintos posteriormente, pois acabariam sem descendentes. 
Esta abordagem do roteiro do filme, baseada no estilo das tragédias gregas, me remontou  aos meus estudos de Nietzsche: “em todos os tempos os sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não vale nada! Desde Sócrates,  que disse ao morrer: Viver é estar há muito enfermo”. Daí teria se desenvolvido uma espécie de loucura da vontade, que é a crueldade psíquica da vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível, sua vontade de crer-se castigado, sem que o castigo possa jamais equivaler à culpa, sua vontade de erigir um ideal, o ídolo do “santo Deus” e, em vista dele ter certeza de sua total indignidade.” 
A propósito, com o cristianismo em baixa e o budismo em alta, tempos atrás   eu estava lendo duas abordagens completamente antagônicas da vida, e estava inclinado a escrever alguma coisa sobre o enfrentamento dos ideais simbolizados na flor de lótus do budismo do Dalai Lama em oposição aos golpes de martelo da filosofia de Nietzsche para destruição de todos os ídolos. Estava mesmo achando que era uma empreitada que iria além da minha capacidade e autonomia de vôo, que era muita areia para o meu caminhãozinho  esta intenção de contrapor a “Compaixão Budista”, base fundamental da doutrina tibetana, com a “Genealogia da Moral” que vai “Além do Bem e do Mal”, do filósofo alemão.
O ascetismo (prática de abstenção dos prazeres) foi o instrumento utilizado por todas as filosofias e religiões para se implementar esta negação da vida com imposições de abnegações penitentes, chegando ao extremo da filosofia vedanta, ainda segundo Nietzsche, que rebaixou a própria corporeidade a uma mera ilusão. Assim, para o filósofo, “a partir desta doença niilista que acometeu a humanidade, de negação da vida, se desenvolveu o grande nojo do homem e, conseqüentemente, como uma função ascética de expiração da culpa pecaminosa de seu existir, se desenvolveu a grande compaixão pelo homem!...Em todas as religiões os crentes são convencidos que a alma se ergue deste corpo e penetra na luz suprema do infinito (no nada) e assume a sua forma própria. Em todas estas religiões pessimistas chama-se ao nada de Deus e a vida é nada.
          
          Como percebem, eu estava como um marisco na concha entre o mar e o rochedo, ao pretender contrapor o tema principal do budismo, que é justamente o altruísmo ascético, baseado no poder da compaixão e do amor, ao martelo destruidor de ídolos do Nietszche, filósofo que pretendia despertar o “super-homem” que diz haver em cada um de nós. Senti-me encurralado principalmente porque eu estava  gostando de exercitar as sessões de meditação na seita da Brahma Kumaris, e estava me identificando com a postura despojada do Dalai Lama, líder budista que centra o seu foco na busca da paz e serenidade no dia-a-dia desta vida, independente se haja ou não um Deus no além do nada nietzschiano.
         Então, entre o budismo e o nietzschianismo, mudei o meu foco de abordagem do tema  e, apesar de continuar ainda como um marisco entre estes poderosos fluxos e repuxos, pensei em contrapor a eles o “Encantado Mundos dos Devaneios”. Considerando que filosofar é pensar de forma sistemática e meditar é não pensar, ou seja, é esvaziar-se do “eu” e integrar-se ao “todo” (ou ao nada do Nietzsche), o mundo dos devaneios é entregar-se à correnteza dos pensamentos aleatórios, sem o eu impor nenhuma sistemática ou raciocínio filosófico ocidental, e sem as rédeas de amordaçamento do eu dos métodos de meditação orientais. Resgato aqui esta prática empírica e intuitiva que sempre tive imenso gosto de exercer, desde a minha mais remota infância, como uma fuga do mundo exterior e um mergulho livre no meu interior. Ás vezes ficava na cama, como ainda fico se não me policiar, por várias horas que voam como se fossem instantes de projeções extra-físicos, em devaneios de olhos fechados, em que o pensamento pulula loucamente desde coisas coerentes e reais até ficções surrealistas e absurdas. O mundo dos devaneios é um estado alfa da mente em que os pensamentos ganham a liberdade dos sonhos e se confundem com eles, de tal forma que ao final não sabemos se nos mantivemos em vigília ou se inconscientemente adormecemos e sonhamos no transcorrer do exercício. É como aquele trocadilho que diz: “sonhei que estava acordado, mas quando acordei para ver, eu estava dormindo”.
          Talvez o mundo dos devaneios encante mas não ajude, nem na evolução espiritual nem na do conhecimento filosófico, mas é incontestável que ele possibilita uma convivência consigo mesmo inigualável. Pois é com esta verdade encontrada que resolvi o meu impasse nos temas que me propunha a contrapor, com uma saída honrosa pelo viés da estética literária, que sempre foi o meu universo de enfocar e compreender a vida. Voltando ao tapete vermelho de Hollywood com “Noah”, não convém contar o final do polêmico filme Noé, pra não estragar a surpresa de quem for assistir. Mas mesmo não havendo nenhum plano divino para a continuidade dos humanos na face da terra, nós continuamos aqui pecando com muito prazer! Sobrevivemos devido às peripécias  humanas ocorridas na Arca de Nóe no transcorrer do Dilúvio cinematograficamente literário, baseado em um histórico devaneio bíblico. 

domingo, 13 de abril de 2014

Agora sou um idoso, e com pouco cabelo.

          Agora eu sou um idoso! Ariano do segundo decanato de abril, acabei de completar os meus 60 anos de idade. Conquistei, com isso, o meu passaporte com o título de “pessoa preferencial”. Ganhei o direito de furar as filas, usar as vagas de estacionamento indicadas com a figura de um velhinho de bengala e simulando dor nas costas, e agora posso andar de ônibus com passe livre de idoso ( sem desertar do Bloco de Lutas pelo passe livre para todos!). Mas, depois  dos sessenta, muitas transformações se processam na alma e  no corpo do ser humano na face da terra e, no meu caso, no humano biologicamente classificado como masculino. As mutações não são restritas aos machos por opção sexual, elas atingem a todos indiscriminadamente e, cada vez mais, atinge aos humanos geneticamente femininos que invadiram todas as praias do gênero oposto, e que agora descobrem na própria pele as contra-indicações e o stress de estar no comando.
          Um dos aspectos mais característicos, por sua visibilidade escancarada, são as metamorfoses que ocorrem no couro cabeludo das cabeças  dos homens nesta fase etária. Dos tantos longos topetes negros tipo Elvis na juventude, são pouquíssimos que chegam a ter topete branco, a maioria perde o topete todo pelo caminho. Passado a fase que “dói cada cabelo branco que nasce”, passam rapidamente pela etapa de que “dói cada cabelo que cai ”, e chegam ao calvário da migração de mechas dos cabelos da cabeça para o ralo do box do chuveiro, que dói todas as manhãs. É o calvário da calvície anunciada.
         A esta altura da vida, o sexagenário certamente já voltou decepcionado de uma primeira consulta ao dermatologista sobre calvície, aos constatar que ele é careca.  Depois ficamos desencorajados ao vermos tanta gente famosa, na televisão e no cinema, que ganha a vida com a exposição pública de sua imagem, que sobrevivem conformadas com o fato de que as perdas dos pelos da cabeça é uma coisa natural da vida. Temos todos que nos submetermos aos ditames do destino e das heranças genéticas, bem como a tantas outras perdas mais graves, além das  perdas estéticas, que a idade vai impondo na saúde do homem comum.
             O ralo do box do chuveiro entope e provoca inundações emocionais tal o tamanho da peruca que reúne toda a semana, enquanto o espelho vai captando a sequência de imagens com mudanças sutis. Mudanças que, por serem infinitesimalmente consecutivas, vão delineando o roteiro de um filme curta-metragem com a câmera fixa em close no topete: do penteado ondulado para trás evolui para um corte lambido para o lado e, no quadro seguinte, já é um penteado para a frente, com uma rala franjinha ridícula evoluindo para uns esparsos fios espalhados para todos os lados  até, Deus nos livre, o último recurso de tentar cobrir o tampo, passando os cabelos lambidos de uma lado para o outro da cabeça. 
           Uma alternativa péssima é a que insiste em lhe oferecer o seu calvo cabeleireiro preferido,  o qual já investiu o preço de um carro novo na implantação de alguns míseros fios de cabelo em sua própria cabeça e que, do alto de sua larga experiência, insiste em querer pintar os seus preciosos cabelos brancos. O cara não consegue entender que o seu  problema não é a cor dos cabelos, é a quantidade deles, e que eles iriam cair ainda mais se sofressem a  agressão de uma tintura artificial. Faz parte do marketing do ofício dele, resista.
Mas, com a grande evolução da bio-genética do novo milênio, ciência que preconiza a realização do clone humano, já é hora de começar a surgir cabeludos dermatologistas velhinhos. Os alquimistas vão chegar já-já com a fórmula da poção mágica que manterá em sua cabeça estes últimos fios de cabelos, vestígio do que foi o seu topete. Mas, se ainda lhe resta um tufo de cabelos frontais, desde já esteja consciente de que estás com um carro novo na cabeça, pois este seria o preço equivalente para implantares esse mesmo chumaço que se mantém heroicamente enraizado nessa sua cabeça já semi-nua.
Agora sou um idoso, e com pouco cabelo (exceto nas orelhas e no nariz, de onde cabelos saem como aranhas da toca)! E não é só a testa que cresce em direção à nuca, com a chegada da andropausa a barriga e as bochechas também crescem como balões murchos, com estrias e rugas. Em compensação, tudo na vida tem suas compensações valiosas: ganhei o direito a pagar meia entrada em cinemas, teatros e shows. Acreditem, vale a pena envelhecer vivo!

terça-feira, 1 de abril de 2014

Porto Alegre: Meu Cais

Estamos finalmente mergulhando nas refrescantes aragens do outono no paralelo 30, depois deste verão de 2014 que foi o mais quente dos últimos trinta anos. Calor que parece querer indicar que ainda teremos muito inferno pela frente para cozinhar no caldeirão do tempo as mazelas humanas por seus desequilíbrios ecológicos.
Quem navegar por esta região do planeta, como fizeram os açorianos, aportará na cidade de Porto Alegre, que em 26 de março passado comemorou seus 242 anos. Cidade que propicia aos seus habitantes a vivência intensa das cores e aromas característicos e diferenciados das suas quatro estações do ano.
 Porto tri-legal,  que enquanto muiiiito lentamente se moderniza em sua infra-estrutura, vai conservando seus valores culturais latino-americanos nas rodas de mates e, sobretudo, busca recuperar os sonhos perdidos, como o da balneabilidade das suas praias e a construção do seu metrô.  Metrópole que se mobiliza com o movimento dos ciclistas por um trânsito mais humanizado; recanto do planeta onde o sol  poente edita a cada dia um novo e maravilhoso cartão postal às margens do Guaíba.
         Porto que acolheu a todos nós, natos ou filhos adotivos oriundos do êxodo rural, à deriva da  perversa má distribuição de renda deste país,  é a cidade onde ancoramos nossas vidas, para onde sempre retornamos, por mais longe que eventualmente naveguemos. É de suas noites frias e de suas tardes calorentas que sentimos falta, bem como de suas manhãs, quando derramando-se em folhas pelos seus parques e florindo multicolorida pelos jardins suspensos de suas avenidas arborizadas. 
         Porto Alegre é o nosso lugar no mundo, lugar que nos identifica e diferencia dos outros povos  do planeta; lugar que define o nosso peculiar ponto de vista, determina a essência dos nossos princípios, do nosso jeito de ser e de viver. Ser portoalegrense é saber  construir sonhos com as próprias mãos, pedra por pedra, como quem constrói um cais, é sentir-se parte das docas do cais desta cidade, é ter-se no peito um porto aberto a todos os navios,  alegres ou não.