Neste
verão tórrido de temperaturas acima de 40 graus, sentimos do Ipiranga às
margens plácidas, como um povo heróico o
calor e o cheiro retumbante saído de nossas próprias entranhas em forma de
esgoto a céu aberto. O antigo “Arroio da Ipiranga” é parte vital do corpo de
Porto Alegre, como se fosse seu intestino grosso, feito transparente para que toda a população
possa monitorar a saúde da sua cidade. Assim acompanhamos os esforços dos
órgãos de saneamento público no interminável combate às escleroses: às
formações de ilhas férteis ao longo do canal, onde brotam árvores e ótimas
pastagens aproveitadas pelos cavalos dos nossos carroceiros em extinção.
O Arroio Dilúvio adquiriu esta
denominação, imagino, em menção à
passagem bíblica, diante do temor
generalizado de que ele venha realmente a transbordar de tal maneira que inunde
toda a cidade. Do nascente ao poente, este riacho é o trajeto, não só dos
dejetos, mas também é o caminho do próprio sol na sua ronda diária pela cidade
e, igualmente ao arroio, é no manancial do Guaíba que o sol vai banhar-se e
espelhar-se após mais um dia de trabalho, dando um colorido de cartão postal a este
renomado pôr-de-sol.
Talvez a minha geração tenha
sido a última a ainda pegar peixes no riacho da Ipiranga, cascudos é claro, mas
ainda havia vida nele, quando ainda era um arroio. Com o aumento populacional
acumulando-se ao seu redor nos últimos quarenta anos, alem do riacho virar
valão, o Rio Guaíba virou Lago sem praias; mas não há só pardais eletrônicos
pousados nas esquinas de suas pontes, em seu leito ainda sobrevoam lindas
garças brancas. É a resistência da natureza sinalizando que, com as obras de
esgotamento cloacal que estão em desenvolvimento pelo Dmae, um dia toda a orla
da cidade poderá voltar a ser um belíssimo balneário. Resta-nos ainda a
esperança que um dia haja a reintegração completa do povo portoalegrense com a
sua essência de açorianos argonautas nas margens do Guaíba, tanto os que vivem
por cima quanto os que vivem embaixo das pontes da Av. Ipiranga.
Mas enquanto isto não se
realiza, precisamos continuar convivendo com os sintomas dos organismos
intestinais da nossa cidade expostos pelo Arroio Dilúvio, inclusive quando ele
sangra, misteriosamente tingindo-se todo de vermelho, como ocorreu no ano 2001,
sem que ninguém conseguisse explicar se o arroio havia cortado os pulsos ou se foi
a placenta da bolsa da esperança que havia se rompido, abortando uma maré
vermelha de poluição. Enquanto não houver a separação absoluta do esgotamento
público cloacal do pluvial para o devido tratamento dos efluentes, vamos
continuar trilhando o esgoto a céu aberto do nosso “Caminho do Dilúvio”.
Na última década evoluímos muito como metrópole sem metrô:
seremos sede de jogos da Copa do Mundo de Futebol em 2014! Evoluímos tanto que,
apesar da falta de mobilidade urbana de transportes públicos, razão do
movimento nacional contra os “20 Centavos”, agora já podemos fazer exercícios
aeróbicos (sem respirar fundo) pedalando ao longo dos modernos trechos de
ciclovia da Avenida Ipiranga. Na Copa poderemos revelar ao mundo o nosso
particular charme turístico internacional, o de vivermos à beira de um Dilúvio
que se mantém biblicamente nos ameaçando de transbordar e, como castigo pela
merda que fizemos com o espaço urbano sem planejamento, nos inundar na lama de
nossas próprias fezes.
Celso, é na crônica descompromissada, com certa leveza crítica que encontras a maturidade de teu potencial de escritor.
ResponderExcluirPois, a crônica flui de uma maneira tranquila, mesmo com seus aspectos incisivos, e tem algo básico que é o princípio, o meio e o fim, conduzidos com habilidade.
Na crônica aparece o homem e suas vivências no papel de espectador de uma realidade, no caso a degradação de um grande pedaço de Porto Alegre, exemplarmente adotando o sígno do intestino grosso, que apresenta diverticulites diversas e tumores incuráveis, em seu trajeto aquoso.
Parabéns!
Ricardo Mainieri.