sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

À Beira do Dilúvio

            Neste verão tórrido de temperaturas acima de 40 graus, sentimos do Ipiranga às margens plácidas,  como um povo heróico o calor e o cheiro retumbante saído de nossas próprias entranhas em forma de esgoto a céu aberto. O antigo “Arroio da Ipiranga” é parte vital do corpo de Porto Alegre, como se fosse seu intestino grosso,  feito transparente para que toda a população possa monitorar a saúde da sua cidade. Assim acompanhamos os esforços dos órgãos de saneamento público no interminável combate às escleroses: às formações de ilhas férteis ao longo do canal, onde brotam árvores e ótimas pastagens aproveitadas pelos cavalos dos nossos carroceiros em extinção. 
           O Arroio Dilúvio adquiriu esta denominação, imagino,  em menção à passagem  bíblica, diante do temor generalizado de que ele venha realmente a transbordar de tal maneira que inunde toda a cidade. Do nascente ao poente, este riacho é o trajeto, não só dos dejetos, mas também é o caminho do próprio sol na sua ronda diária pela cidade e, igualmente ao arroio, é no manancial do Guaíba que o sol vai banhar-se e espelhar-se após mais um dia de trabalho, dando um colorido de cartão postal a este renomado pôr-de-sol.
           Talvez a minha geração tenha sido a última a ainda pegar peixes no riacho da Ipiranga, cascudos é claro, mas ainda havia vida nele, quando ainda era um arroio. Com o aumento populacional acumulando-se ao seu redor nos últimos quarenta anos, alem do riacho virar valão, o Rio Guaíba virou Lago sem praias; mas não há só pardais eletrônicos pousados nas esquinas de suas pontes, em seu leito ainda sobrevoam lindas garças brancas. É a resistência da natureza sinalizando que, com as obras de esgotamento cloacal que estão em desenvolvimento pelo Dmae, um dia toda a orla da cidade poderá voltar a ser um belíssimo balneário. Resta-nos ainda a esperança que um dia haja a reintegração completa do povo portoalegrense com a sua essência de açorianos argonautas nas margens do Guaíba, tanto os que vivem por cima quanto os que vivem embaixo das pontes da Av. Ipiranga.
          Mas enquanto isto não se realiza, precisamos continuar convivendo com os sintomas dos organismos intestinais da nossa cidade expostos pelo Arroio Dilúvio, inclusive quando ele sangra, misteriosamente tingindo-se todo de vermelho, como ocorreu no ano 2001, sem que ninguém conseguisse explicar se o arroio havia cortado os pulsos ou se foi a placenta da bolsa da esperança que havia se rompido, abortando uma maré vermelha de poluição. Enquanto não houver a separação absoluta do esgotamento público cloacal do pluvial para o devido tratamento dos efluentes, vamos continuar trilhando o esgoto a céu aberto do nosso “Caminho do Dilúvio”.
        Na última década evoluímos muito como metrópole sem metrô: seremos sede de jogos da Copa do Mundo de Futebol em 2014! Evoluímos tanto que, apesar da falta de mobilidade urbana de transportes públicos, razão do movimento nacional contra os “20 Centavos”, agora já podemos fazer exercícios aeróbicos (sem respirar fundo) pedalando ao longo dos modernos trechos de ciclovia da Avenida Ipiranga. Na Copa poderemos revelar ao mundo o nosso particular charme turístico internacional, o de vivermos à beira de um Dilúvio que se mantém biblicamente nos ameaçando de transbordar e, como castigo pela merda que fizemos com o espaço urbano sem planejamento, nos inundar na lama de nossas próprias fezes. 

Um comentário:

  1. Celso, é na crônica descompromissada, com certa leveza crítica que encontras a maturidade de teu potencial de escritor.
    Pois, a crônica flui de uma maneira tranquila, mesmo com seus aspectos incisivos, e tem algo básico que é o princípio, o meio e o fim, conduzidos com habilidade.
    Na crônica aparece o homem e suas vivências no papel de espectador de uma realidade, no caso a degradação de um grande pedaço de Porto Alegre, exemplarmente adotando o sígno do intestino grosso, que apresenta diverticulites diversas e tumores incuráveis, em seu trajeto aquoso.
    Parabéns!

    Ricardo Mainieri.

    ResponderExcluir