sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A tragédia de envelhecermos como potenciais suicidas

O Brasil é o oitavo país com mais casos de suicídios, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Estado do Rio Grande do Sul apresenta a maior incidência de suicídios do país, mais de mil casos por ano.  Entre as capitais, Porto Alegre apresenta o maior índice de suicidas. Este assunto é tabu na mídia, desde a publicação do livro O Sofrimento do Jovem Werther, de Goethe em 1774, em que o herói se mata e que teria incentivado uma onda de suicídios entre os jovens europeus. Recentemente o assunto esteve na mídia mundial com o ator de cinema americano Robin Williams, que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante pelo filme Gênio Indomável, e protagonizou outros tantos sucessos, como Amor Além da Vida e Sociedade dos Poetas Mortos, que aos 63 anos cometeu suicídio por enforcamento.  O meu interesse, como integrante que sou de um grupo de alto risco (por ser gaúcho, portoalegrense e idoso), é focar no fato de que a maioria das pessoas que cometem suicídio tem mais de 50 anos, e que os homens comentem o dobro de suicídios do que as mulheres. Sou, portanto, um suicida em potencial?
 Hoje em dia, a maioria das famílias não tem tempo ou estrutura para cuidar dos seus idosos. Todos têm de trabalhar e os deixam sós ou os colocam em clínicas geriátricas.  Embora eu recém agora, em 2014, entrei no jardim de infância da terceira idade, quando me tornei um sessentão do terceiro milênio, já estou fazendo intensivo aprendizado em geriatria, tipo residência médica, com a minha mãe que completou 90 anos. Mesmo sem nenhum AVC, mas como quase todo mundo depois dos oitenta, ela já sofre as agruras das dores generalizadas do final de carreira, as quais estou acompanhando e prestando bastante atenção, e tentando amenizar no que for possível. Estou ligado neste tema por saber que a “barreira dos oitenta”, da quarta-idade, é o próximo grande rito de passagem na vida de um aposentado, depois da qual já estamos no lucro ou no prejuízo, gozando ou pagando as multas pelos excessos cometidos nas fases anteriores.

No ano passado o grande ator Walmor Chagas, gaúcho e idoso como eu, aos 82 anos de idade suicidou-se em sua chácara, com um tiro na cabeça. Segundo o psicanalista Mário Corso, uma das razões do silêncio sobre o tema do suicídio é por temermos a pergunta radical que é feita pelos que desistem: por que mesmo vale a pena seguir vivendo?  No caso, o suicídio foi por depressão na velhice extrema. Walmor vivia praticamente isolado. Enxergava mal, tinha dificuldades para andar, se alimentava pouco e precisava da ajuda de empregados para executar tarefas cotidianas. As limitações típicas da velhice são o principal detonador dos casos de depressão entre idosos. Em alguns casos, a pessoa requer auxílio até para fazer a própria higiene. É uma fase de difícil aceitação, e há quem jamais a aceite e recorra a atitudes extremas para escapar.
Até os 85 anos a minha mãe, Dona Ciça, ainda mantinha a sua casa, morando sozinha e sendo o centro de convergência dos filhos, netos e bisnetos dispersos pelo mundo. Até que tonturas e vertigens breves incutiram o medo de ela ficar sozinha no apartamento durante as noites; depois alguns lapsos eventuais de esquecimentos de panelas no fogão com o fogo aceso foram minando a segurança da viúva matriarca. Então Dona Ciça passou a viver num pensionato de idosas, como num apart-hotel, ainda mantendo um espaço privado com suas coisas num cômodo amplo, e compartilhando com outras velhinhas as áreas comuns de banheiros e refeitório. Livre das tarefas domésticas de fazer compras, estocar alimentos, cozinhar e fazer faxinas, finalmente quem sempre serviu passou a ser servida.
Contudo, sem ter acesso mais ao fogão, a Dona Ciça perdeu o domínio do fogo, o que foi bastante simbólico na decrepitude de uma ex-cozinheira de restaurante. A surdez foi fazendo com que ela não conseguisse mais acompanhar as tramas das telenovelas nem as conversas em volta de si (mesmo com um aparelho auditivo). A catarata foi lhe roubando a visão e limitando a sua capacidade de fazer crochê e de ler o jornal diariamente, atividades que eram as suas ocupações prediletas.
 Há de envelhecer-se, mas sem perder a autonomia jamais. Manter a sua autosuficiência passou a ser a principal preocupação da Dona Ciça, pois ela sabia que “se caducasse demais” seria preciso que ela migrasse do pensionato para a clínica de geriatria, que é um ambiente hospitalar, terminal, deprimente e, por ser muito caro, dá ao velho a sensação de vir a ser um estorvo para os filhos... Hoje, alguns anos depois, menos por caduquice e mais por debilidade física, faz poucos meses que a Dona Ciça foi, contra a sua vontade, para uma clínica geriátrica; pra lá vamos todos? É a temível última fase do game da vida: a velhice extrema.
A Dona Ciça resiste em aceitar que perdeu completamente a autonomia sobre o seu próprio corpo, até mesmo das funções fisiológicas. Resiste em se adaptar à circunstância de ser cuidada, banhada, vestida, conduzida, alimentada, medicada e deitada por estranhos que determinam quando e como deve sentar, levantar ou deitar. Diante da resistência da Dona Ciça, na maior parte do tempo lúcida, mas com algumas alucinações e crescentes apagamentos de memória, sempre lembro a todos os meus irmãos que devemos aproveitar esta experiência da revolta e indignação dela como um aprendizado para as nossas vidas: todos já somos idosos (eu sou o caçula) e estamos no rumo da velhice extrema. Pra lá vamos!
 A resposta de todos a quem comento o caso, não só dos filhos da Dona Ciça, tem sido de que ninguém quer viver tanto, que vão morrer antes da velhice extrema. Retruco que, Deus os ouça, mas querer não é poder, é mais não querer ver como vai ser se sobreviverem até lá...A não ser que, inconscientemente, queiram fazer como o casal de velhinhos suicidas do filme Amor (que narra a decrepitude da vida na velhice e ganhou o César 2013 - espécie de Oscar francês), os quais passaram por caminhos bem espinhosos, com dor, AVC e perda da identidade. Encurralados pela solidão da velhice também eles preferiram, como Robin Williams e Walmor Chagas, precipitar o término da jornada existencial sem esperar pelo doloroso fim natural. 
                 A tragédia silenciosa de envelhecermos ao extremo nos transformará a todos em potenciais suicidas?...

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