No filme Noé (interpretado
por Russell Crowe), o personagem bíblico recebe a revelação de que o ser humano
se tornou irremediavelmente pecaminoso. Então, Noé (filho de Matusalém,
interpretado por e Anthony Hopkins) entendeu que a vontade divina era de que toda
a raça humana fosse destruída no dilúvio anunciado. Como membro da raça
racionalmente pecadora, Noé foi o escolhido para conduzir a transição do
aguaceiro como sendo mero construtor da arca e condutor épico da salvação dos
demais seres vivos. Mas inclusive ele e a sua própria família (mulher e três
filhos homens) também seriam extintos posteriormente, pois acabariam sem
descendentes.
Esta
abordagem do roteiro do filme, baseada no estilo das tragédias gregas, me remontou
aos meus estudos de Nietzsche: “em todos os tempos os sábios fizeram o
mesmo juízo da vida: ela não vale nada! Desde Sócrates, que disse ao morrer: Viver é estar há muito
enfermo”. Daí teria se desenvolvido uma espécie de loucura da vontade, que é a crueldade
psíquica da vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível, sua vontade de
crer-se castigado, sem que o castigo possa jamais equivaler à culpa, sua
vontade de erigir um ideal, o ídolo do “santo Deus” e, em vista dele ter
certeza de sua total indignidade.”
A
propósito, com o cristianismo em baixa e o budismo em alta, tempos atrás eu
estava lendo duas abordagens completamente antagônicas da vida, e estava
inclinado a escrever alguma coisa sobre o enfrentamento dos ideais simbolizados
na flor de lótus do budismo do Dalai Lama em oposição aos golpes de martelo da
filosofia de Nietzsche para destruição de todos os ídolos. Estava mesmo achando
que era uma empreitada que iria além da minha capacidade e autonomia de vôo, que
era muita areia para o meu caminhãozinho
esta intenção de contrapor a “Compaixão Budista”, base fundamental da
doutrina tibetana, com a “Genealogia da Moral” que vai “Além do Bem e do Mal”,
do filósofo alemão.
O
ascetismo (prática de abstenção dos prazeres) foi o instrumento utilizado por
todas as filosofias e religiões para se implementar esta negação da vida com
imposições de abnegações penitentes, chegando ao extremo da filosofia vedanta,
ainda segundo Nietzsche, que rebaixou a própria corporeidade a uma mera ilusão.
Assim, para o filósofo, “a partir desta
doença niilista que acometeu a humanidade, de negação da vida, se desenvolveu o
grande nojo do homem e, conseqüentemente, como uma função ascética de expiração
da culpa pecaminosa de seu existir, se desenvolveu a grande compaixão pelo
homem!...Em todas as religiões os
crentes são convencidos que a alma se ergue deste corpo e penetra na luz
suprema do infinito (no nada) e assume a sua forma própria. Em todas estas
religiões pessimistas chama-se ao nada de Deus e a vida é nada.
Como percebem, eu estava como um marisco na concha entre o mar e o rochedo, ao pretender contrapor o tema principal do budismo, que é justamente o altruísmo ascético, baseado no poder da compaixão e do amor, ao martelo destruidor de ídolos do Nietszche, filósofo que pretendia despertar o “super-homem” que diz haver em cada um de nós. Senti-me encurralado principalmente porque eu estava gostando de exercitar as sessões de meditação na seita da Brahma Kumaris, e estava me identificando com a postura despojada do Dalai Lama, líder budista que centra o seu foco na busca da paz e serenidade no dia-a-dia desta vida, independente se haja ou não um Deus no além do nada nietzschiano.
Então, entre o budismo e o nietzschianismo,
mudei o meu foco de abordagem do tema e,
apesar de continuar ainda como um marisco entre estes poderosos fluxos e
repuxos, pensei em contrapor a eles o “Encantado Mundos dos Devaneios”.
Considerando que filosofar é pensar de forma sistemática e meditar é não
pensar, ou seja, é esvaziar-se do “eu” e integrar-se ao “todo” (ou ao nada do
Nietzsche), o mundo dos devaneios é entregar-se à correnteza dos pensamentos
aleatórios, sem o eu impor nenhuma
sistemática ou raciocínio filosófico ocidental, e sem as rédeas de amordaçamento
do eu dos métodos de meditação
orientais. Resgato aqui esta prática empírica e intuitiva que sempre tive
imenso gosto de exercer, desde a minha mais remota infância, como uma fuga do
mundo exterior e um mergulho livre no meu interior. Ás vezes ficava na cama,
como ainda fico se não me policiar, por várias horas que voam como se fossem
instantes de projeções extra-físicos, em devaneios de olhos fechados, em que o
pensamento pulula loucamente desde coisas coerentes e reais até ficções
surrealistas e absurdas. O mundo dos devaneios é um estado alfa da mente em que
os pensamentos ganham a liberdade dos sonhos e se confundem com eles, de tal
forma que ao final não sabemos se nos mantivemos em vigília ou se
inconscientemente adormecemos e sonhamos no transcorrer do exercício. É como
aquele trocadilho que diz: “sonhei que estava acordado, mas quando acordei para
ver, eu estava dormindo”.
Talvez
o mundo dos devaneios encante mas não ajude, nem na evolução espiritual nem na
do conhecimento filosófico, mas é incontestável que ele possibilita uma
convivência consigo mesmo inigualável. Pois é com esta verdade encontrada que
resolvi o meu impasse nos temas que me propunha a contrapor, com uma saída honrosa
pelo viés da estética literária, que sempre foi o meu universo de enfocar e
compreender a vida. Voltando ao tapete vermelho de Hollywood com “Noah”, não
convém contar o final do polêmico filme Noé, pra não estragar a surpresa de
quem for assistir. Mas mesmo não havendo nenhum plano divino para a continuidade dos
humanos na face da terra, nós continuamos aqui pecando com muito prazer!
Sobrevivemos devido às peripécias humanas
ocorridas na Arca de Nóe no transcorrer do Dilúvio cinematograficamente
literário, baseado em um histórico devaneio bíblico.
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